sábado, outubro 27, 2018

Em terra de cegos, quem tem um olho...





Há agora muitas trotinetas em Lisboa. À noite têm luzinhas e parecem pirilampos deslizando pelos passeios da Baixa. A paisagem urbana vai mudando e eu gosto cada vez mais dela. Não é bom trabalhar até tarde mas é bom, no regresso, andar na bela cidade ao cair da noite. Há qualquer coisa de mágico nisso.

Calhou esta semana ter que atravessar a cidade a meio da tarde e ter tempo para ir pela beira do rio. Uma cidade luminosa, aberta ao mundo. Muita gente desfrutando o sol, deitada na relva, estendida na amurada, andando devagar, conversando, fotografando. Sempre gostei de cidades grandes, com muita gente de passagem cruzando-se com quem a habita ou nela trabalha. Gosto de me sentir também de passagem. Estou de passagem. Se calhar já vivi na época vitoriana frequentando animadas tertúlias, se calhar ajudei a contribuir para a fama das etruscas, se calhar fui monja e escapei-me por corredores labirínticos. Mas, entre todas as minhas vidas, vou passando  com o vagar possível, olhando bem a beleza dos lugares, sentindo o perfume do ar em que vivemos.

Cheguei a casa depois da uma e meia da manhã. Estava desejando despir-me, desapertar-me, descalçar-me. Mal me sentei aqui para espreitar em que param as modas, adormeci. Um bocado antes tinha acontecido o mesmo com os meus meninos. Depois de terem brincado na maior vivacidade, caíram na cama e adormeceram instantaneamente.

Foi longo e muito bom este meu dia. Estar com os meus, ver como gostam de estar juntos, ver como estão bonitos e crescidos é para mim felicidade suprema.

De tarde, tive duas reuniões, a segunda das quais com um homem relativamente jovem, muito alto e parecido com um guerreiro árabe, cabeça rapada e grande barba. Há uma primeira vez para tudo e aparecer num lugar daqueles alguém com aquele ar foi decididamente uma première. Simpatizei com ele. Parecia caído de um outro mundo. Ria muito, muito bem disposto. Acho que não percebeu como estava ali deslocado.

Quando a reunião acabou, despedi-me e acompanhei-o à porta. Nessa altura, meteu a mão no bolso para me entregar um cartão. Nessa altura, alguma coisa veio atrás e caíu para o chão, saltitando como uma pequena bola. Era de facto uma estranha pequena bola. Pareceu-me um olho raiado de sangue. Nessa altura, ele pareceu assustado ainda mais assustado que eu. Apanhou rapidamente a pequena esfera e meteu-a no bolso. Fiz de conta que não reparei e ele nada disse. Quando ia despedir-se de mim fez o gesto de me ir beijar. Estendi-lhe a minha mão, forçando-o a recuar. Sorriu, então, com um ar perverso como se quisesse que eu percebesse que ele tinha captado o meu receio. 

Quando cheguei ao meu gabinete, inquieta, espreitei pela janela. Um outro, que me pareceu exactamente igual mas vestido de outra maneira, esperava no passeio. Estava de costas. Depois aquele que tinha estado comigo chegou, bateu-lhe no ombro. Nessa altura, o outro virou-se. Tinha uma pala preta a tapar um dos olhos. 

Um arrepio percorreu o meu corpo.


5 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Apesar de tanta conversa também me agradam as transformações da paisagem urbana lisbonense e a diversidade que por cá pulula.

Mais ums história halloweenesca...e mais não digo...

Um bom fim-de-semana.

Pôr do Sol disse...

Ver Lisboa à noite, é um passeio que temos por hábito fazer, especialmente de inverno mas de carro, que a idade já agradece.

Começamos normalmente pela Alta, zona que conhecíamos bem e que se vai mantendo. De regresso atravessamos a Baixa essa todos os dias diferente nem sempre para melhor.A beira rio tambem faz parte do "lavar as vistas".

A propósito de vistas achei graça ao final da sua reunião. Lembrei-me de uma frase de um professor de português que dizia: Uma historia não necessita ser verdadeira para ser boa.
E a sua é boa, já que estamos em época de Halloween.

Bom fim de semana.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Os dias vão ficar mais pequenos e, à noite, quando eu sair do trabalho, já vai estar mesmo noite e, com o frio, haverá menos gente passeando na rua e eu gosto de ver as pessoas que andam na rua. Mas Lisboa é linda mesmo com toda a gente dentro de casa.

Quando à minha reunião e ao que se lhe seguiu... é isso... avizinha-se o dia das bruxas, o dia dos sustos...

(E podia dar-me para pior, não acha?)

Abraço, Francisco, e um belo dia de domingo!

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr do Sol,

Não conheço a Alta de Lisboa. Por Alta refere-se, presumo, àquela zona nova ali por cima do aeroporto. Quando passo por lá de carro, creio que é o que se vê do eixo norte-sul, e vejo ali uns grandes relvados, penso que deve ser um bom sítio para passear.

Mas também gosto de passear pela zona do Areeiro, Guerra Junqueiro, Praça de Londres, Av. de Roma, Alvalade, jardim de Entrecampos, e seguir pela Av. da República, descer a av. da Liberdade, passar pela Baixa e ir por ali fora junto ao rio. Lisboa tem muitos percuroso possíveis e todos uma maravilha.

Quanto ao cavalheiro com quem tive a reunião (e tive mesmo) só posso dizer que a partir do momento em que saíu da sala de reunião me deu vontade de o enfiar numa historinha de halloween. E estava a escrever e a rir, com vontade de inventar maluqueiras bem maiores, mais terríficas. Mas contive-me.

Beijinhos, Sol Nascente, e bons passeios!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

É Linda, sem dúvida!

Pois, a reunião, a advogada do outro dia...podia dar-lhe para pior, ou seria uma veia hitchcockiana a saltitar e a produzir umas histórias bem amanhadas dentro do género?