sábado, outubro 21, 2017

Evocações. Ficções.




Estou de volta a casa. A valise está desfeita, tudo devidamente arrumado. Também isto já está mais do que normalizado e faz-se e desfaz-se num minuto. Melhor: desfaz-se em menos de 1 minuto mas o fazer não é nada 1 minuto, é mais demorado pois várias toilettes são geralmente ensaiadas antes de emaladas. Isto, claro, depois de avaliar o clima nas paragens de destino e de equacionar se deve ir uma segunda alternativa para um just in case. Mas pronto, já fui, já vim, já não restam vestígios da minha ausência e já cá estou, de novo, no meu sofá de estimação. 

Num mail que recebi referia-se o autor à fastididiosa deslocação. Nada. Por vezes, são fastidiosas, mas não esta. Esta foi toda boa. Claro que há algum cansaço porque isto que andar de um lado para o outro não é a mesma coisa que estar de perna estendida. Mas não interessa. Foi bom. E o que me diverti e o que dancei soma ainda mais agrado à andança.

Além do mais, é um sossego estar longe de notícias. Rodeada de gente que se vê apenas quando o rei faz anos, toda a gente numa animação, a noite o que ontem já vos tinha contado, depois uma espertina, a seguir uma jornada e, agora, perdida e sono -- no news, portanto. Li que há dois ministros novos mas, quanto a isso, nada, não é tema. 

Ando com vontade de ir ao cinema mas não há nenhum filme que me pareça suficientemente aliciante. Não sei o que se passa para ser a indigência cinéfila que se vê. Que saudades de grandes filmes baseados em grandes obras, com grandes interpretações, grandes bandas sonoras. Que saudades de estar no escurinho do cinema a ver um grande filme, emocionada, deslumbrada. Que saudades.

Também ando com vontade de ir ver uma grande exposição e é a mesma coisa: nada. Estive a espreitar os sites de alguns museus e nada me atrai.

Por isso, sinto-me como se estivesse nas vésperas de ir fazer alguma coisa que me agrade mas com a frustração de não saber o quê.

Também já pensei: será que há por aí algum little passeio, bom a valer, e que me encha as medidas? Mas nada me ocorre. Ir visitar castelos, palácios, miradouros secretos, subterrâneos iluminados? Mas também nada de estimulante e novo se me chega à ideia. Lembro-me do lançamento do livro da Paula Rego e Antonio Tabucchi no Palácio Fronteira num belo fim de dia, a Paula Rego a olhar para mim muito atenta, a dizer-me uma coisa simpática. Uma coisa assim é que agora me apetecia. Um cocktail agradável, o jardim lindíssimo, lots of beuatiful people mas de tipo intelectual e artístico. Uma coisa deveras civilizada. Também me lembro da inauguração de uma exposição no Palácio Galveias, à noite, pinturas bonitas, as salas bonitas e tudo gente elegante. Uma coisa assim também me ia bem.

Ou aquele jantar gourmet, nova cozinha, ou melhor, cozinha de fusão, num palácio, servido e explicado pelo chef, tudo gente discreta como discretos são os verdadeiros burgueses. Depois a vir à noite, eu sozinha no carro, estradas estreitas entre intenso arvoredo. Podia calhar qualquer coisa assim mas, de preferência, desta vez com companhia.

Mas nada. Parece que me andam a rarear coisas assim.

No outro dia uma leitora escreveu num mail que não sabe se tudo o que escrevo é verdade. Não posso fazer nada quanto a isso. Percebo que surjam dúvidas.

Por exemplo, se eu agora escrever que me dói a cabeça vai soar credível, provavelmente ninguém duvidará -- e, no entanto, é totalmente mentira.

No entanto, este mail -- até aqui -- só tem verdades.

Mas se eu escrever assim: 'Vinha no comboio, a ler, quando adormeci. Ao acordar, tinha à minha frente um jovem que deveria ter pouco mais de metade da minha idade. Para meu espanto, lia o meu livro. Quando lhe pedi que mo devolvesse, insolentemente disse-me: se quer, venha buscá-lo. E quando eu lhe puxei o livro, ele agarrou-o com força e puxou-o na sua direcção, fazendo-me desequilibrar e quase cair para cima dele. Fiquei incomodada e com vontade de o esbofetear. Mas disse-lhe apenas: se não me dá a bem, faço-lhe cócegas até que o deixe cair. E, então, ele disse: se quiser pode fazer. Abri então a garrafinha de água, despejei-a na sua cabeça. Então ele perguntou: se tiver aí um pente, aproveitava para me pentear agora que tenho o cabelo molhado.', claro que é tudo inventado.

E agora que escrevi isto, ficou a apetecer-me ir por aí fora a inventar cenas. Podia inventar que esta sexta-feira almocei numa sala espectacular, um almoço espectacular, numa companhia se se lhe tirar o chapéu. Mas isso já seria verdade. Agora se disser: 'Às tantas o cavalheiro que estava ao meu lado, tirou uma flor do centro de mesa e ofereceu-ma e depois serviu-me um vinho que não era vinho nem licor e riu-se de eu não saber o que era', claro que talvez não seja nem uma coisa nem outra.

Enfim. Se não acontecerem para aí hecatombes ou manifestações de force majeure, talvez me dê para escrever uma coisa em que metade será meia verdade, outra metade será mais ou menos e outra metade toda inventada.
E como, nisto, até ver, metades só pode haver duas, cada um que escolha qual a que tem que ir borda fora.
Pronto. Estou para aqui a divagar em vez de ir dormir. Mas vou fazê-lo já antes que fiquem estupefactos, a olhar para isto tudo e a pensar: 'passou-se'.

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Fotografias de Olga Khokhlova* quitadas por Francesco Vezzoli

O pianista extraordinaire é Benjamin Grosvenor

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Bem, já agora, para que isto hoje tenha um mínimo de substância:

Quem é Olga Khokhlova...?





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Votos de um belo sábado a todos quantos por aqui me acompanham.

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