sábado, maio 03, 2014

Verão no meu país desaparecido coisa diferente do que era na realidade, os nossos sucessores colar-lhe-ão as suas histórias, os seus mundos, os seus desejos. Nada nos pertence. Descobrirão beleza em terríveis batalhas, coragem na cobardia dos homens, tudo entrará na lenda.


Para afugentar os maus espíritos que nos desgovernam (ver post abaixo deste), para tentar distrair-me desta gente sem alma, sem moral, sem piedade, que tomou conta dos nossos destinos e maldosamente destrói a esperança num futuro melhor, desço aos meus refúgios, socorro-me das palavras que se encostam a mim, mornas, silenciosas, da música que vem de dentro de seres misteriosos, dispo a roupa, a pele, os pensamentos e fico só eu, eu sem matéria, e, no fim, fecho os olhos e deixo-me ir. Depois, já sou apenas as palavras que outros inventaram, a toada leve, a voz que vem nem sei de onde. E o silêncio branco e puro que tanto procuro. 


Mysteries of Love




A escuridão é quase completa.

Apenas uma vela no exterior projecta alguma luz pela porta entreaberta.

Miguel Ângelo adivinha, mais do que vê, os contornos daquele corpo esbelto, esguio e musculado, que deixa deslizar a roupa para o chão.

Ouve o tilintar das braceletes quando a sombra escura se aproxima dele, antecedida de um perfume de almíscar e de rosa, de suor morno.

O escultor vira-se, enrodilha-se à beira da cama.

Ela, aquela sombra, cantou para ele, ei-la a seu lado, e não sabe que fazer; tem vergonha e muito medo; ela estende-se encostada a si, tocando-lhe; ele sente-lhe o hálito e estremece, como se o vento da noite, vindo do mar, o gelasse de repente.

Sente uma mão poisar-se-lhe no antebraço, e deixa de tremer, aquela carícia arde.

Não sabe qual dos dois pulsos sente bater tão forte através destes dedos.

Uma onda morna de cabelos percorre-lhe a nuca.

De olhos fechados, imagina o rapaz ou a rapariga atrás de si, dobrando o cotovelo, com a cara sobre a sua.

Permanece imóvel, hirto como um cão de caça.



Não busco o amor. Procuro a consolação. 
A verdade é que não há mais nada além do sofrimento, e que em braços alheios tentamos esquecer que em breve iremos desaparecer. 
A tua ponte ficará; talvez, com o correr do tempo, venha a assumir um sentido bem diferente do que tem hoje, tal como verá no meu país desaparecido coisa diferente do que era na realidade, os nossos sucessores colar-lhe-ão as suas histórias, os seus mundos, os seus desejos. Nada nos pertence. Descobrirão beleza em terríveis batalhas, coragem na cobardia dos homens, tudo entrará na lenda. 
Calas-te, sei que não me compreendes. 
Deixa-me abraçar-te. 
Escapas-me como uma serpente. 
Já estás longe, longe de mais para que seja possível alcançar-te.



Muito tempo depois, em fevereiro de 1564, chega a vez de Miguel Ângelo, que se prepara para desaparecer.

Espera ver Deus, e vê-lo-á sem dúvida, já que nisso acredita.

De Istambul resta-lhe uma vaga luz, uma doçura subtil mesclada de amargura, uma música distante, formas suaves, prazeres enferrujados pelo tempo, a dor da violência, da perda: o abandono das mãos que a vida não deixou segurar, dos rostos em que não mais se farão carícias, das pontes que ainda não se lançaram.





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  • O texto abaixo do vídeo é constituído por excertos um pouco ao acaso do belo livro Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes de Mathias Énard, com tradução de Pedro Tamen, livro de que antes já aqui falei antes.

  • A música é Antony & The Johnsons, Mysteries of Love

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Talvez não seja boa ideia, depois disto, descerem até à tristeza do post seguinte mas, enfim, é ao vosso critério.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um óptimo sábado.


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