terça-feira, abril 08, 2014

Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes


No post abaixo já falei das duas duplas mais famosas de momento na televisão portuguesa: José Sócrates & José Rodrigues dos Santos e Marcelo Rebelo de Sousa & Judite de Sousa, tendo eu, até, sugerido a troca de casais, a ver no que dava. Uma cena de swing, não sei se estão a ver. Num comentário a esse post podereis até ver algumas outras duplas de sucesso garantido que o Leitor P. Rufino aqui nos deixou à laia de sugestão.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra. Muito outra.


Música para a Felicidade e contra a Febre e a Depressão



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Como são crianças, fala-lhes de batalhas 
e de reis, de cavalos, de diabos, de elefantes
 e de anjos, mas não deixes de lhes falar de 
amor e de coisas semelhantes.



A noite não comunica com o dia. Arde nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E, juntamente com ela, a sua gente, os beberrões, os poetas, os amantes. Nós somos um povo de degredados, de condenados à morte. A ti não te conheço. Conheço o teu amigo turco; é um dos nossos. A pouco e pouco desaparece do mundo, engolido pela sombra e pelas suas miragens; somos irmãos. Não sei que dor ou que prazer o empurrou para nós, para o pó de estrela, talvez o ópio, talvez o vinho, talvez o amor; talvez alguma obscura ferida da alma, bem escondida nos recessos da alma.

Queres juntar-te a nós.

O teu medo e a confusão em que estás lançam-te nos nossos braços, procuras aninhar-te neles, mas o teu corpo duro continua agarrado às suas certezas, afasta o desejo, recusa abandonar-se.


O teu braço é duro. O teu corpo é duro. A tua alma é dura. é claro que não estás a dormir. Sei que estavas à minha espera. Há pouco reparei nos teus olhares. sabias que eu ia chegar. Tudo acaba sempre por acontecer. Desejaste a minha presença, e aqui estou. Muitos, deitados no escuro, desejariam ter-me junto deles; tu viras-me as costas. Sinto os teus músculos tensos, os teus músculos de bárbaro ou de guerreiro. Só com o manejo da espada se conseguem braços tão fortes. Da espada ou da foice. No entanto, não te imagino camponês, nem soldado, senão não estarias aqui. És áspero de mais para seres poeta como o teu amigo turco. Serás então marinheiro, capitão, mercador? Não sei. Não me olhavas como coisa que se pode comprar ou possuir pelas armas.

Gostei do teu modo de me observar enquanto cantava. A precisão dos teus olhos, a delicadeza da sua cobiça. E agora, quê? Tens medo, estrangeiro? Eu é que deveria ter medo. Não passo de uma voz na escuridão, irei desaparecer com a alvorada. 

Deslizarei para fora deste quarto quando se puder distinguir uma linha preta de uma linha branca e os muçulmanos chamarem para a oração.

Vão pagar-me, não há nada de que te possas acusar. Deixa-te levar pelo prazer. Estás a tremer. Não me desejas? Então ouve. 

Era uma vez num país distante... Não, não te vou contar uma história. Já não é tempo de histórias. A época dos contos terminou. Os reis são uns selvagens que matam os cavalos que montam; há muito que deixaram de oferecer elefantes às suas princesas.

Os astros desviam-se de nós; mergulham-nos na penumbra. Vai-se a luz para o outro lado da terra, quem sabe quando voltará. Não te conheço, estrangeiro. Nada sabes de mim, apenas temos a noite em comum. Partilhamos este momento, sem o quereremos. Apesar dos golpes que em nós vibrámos, apesar das coisas destruídas, estou encostada a ti no escuro. Não vou entreter-te com as minhas histórias até ao alvorecer. Não irei falar-te de génios bons, nem de vampiros aterradores, nem de viagens em ilhas perigosas. Não resistas. Esquece o teu medo, aproveita eu ser, como tu, um pedaço de carne que não pertence a ninguém a não ser a Deus. Toma um pouco da minha beleza, do perfume da minha pele. Oferecem-to. Não será nem uma traição, nem uma jura; nem uma derrota, nem uma vitória.

Apenas duas mãos agarradas, como lábios que se apertam sem nunca se unir.


A tua embriaguez é tão doce que me estonteia. Respiras suavemente. Estás vivo. Gostaria de passar para o teu lado do mundo, de ver nos teus sonhos. Será que sonhas com um amor branco, frágil, distante, tão longe? Com uma infância, com um palácio perdido? Sei que lá não tenho lugar. que nenhum de nós lá terá lugar. Estás fechado como uma concha. E, no entanto, fácil te seria abrires-te, uma minúscula fenda por onde a vida se precipitaria. Adivinho o teu destino. Permanecerás na luz, serás celebrado, serás rico. O teu nome imenso como uma fortaleza irá esconder-nos da tua sombra. Irá esquecer-se o que aqui viste. esses instantes irão desaparecer. Até tu esquecerás a minha voz, o corpo que desejaste, os teus tremores, as tuas hesitações. 

Como eu gostaria de que algo conservasses disso. Que levasses contigo uma parte de mim. Que se transmitisse o meu país distante. Não uma vaga recordação, uma imagem, mas a energia de uma estrela, a sua vibração no escuro. Uma verdade. Sei que os homens são crianças que expulsam o seu desespero com a cólera, e o seu medo para o amor; ao vazio respondem construindo castelos e templos. Agarram-se a historietas, levam-nas à sua frente como estandartes; cada um faz sua uma história para se ligar à multidão que a partilha. São conquistados quando se lhes fala de batalhas, de reis, de elefantes e de seres maravilhosos; quando se lhes narra a felicidade que haverá para além da morte, a luz viva que presidiu ao seu nascimento, os anjos que giram à sua volta, os demónios que os ameaçam, e o amor, o amor, essa promessa de olvido e de saciedade. Fala-lhes de tudo isso e hão de amar-te; far-te-ão igual a um deus. Mas, pois que estás aqui encostado a mim, tu saberás, tu, um franco malcheiroso que o acaso trouxe para te pôr ao alcance das minhas mãos, saberás que tudo isso não passa de um véu perfumado que esconde a eterna dor da noite.


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O texto é um conjunto de excertos do belíssimo livro Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes de Mathias Énard (que nasceu em 1972, estudou persa e árabe, viveu largos períodos no Médio Oriente e que é professor de árabe na Universidade de Barcelona, cidade onde vive) e que e foi traduzido por Pedro Tamen para a D. Quixote. 


Este livro ganhou o Prémio Goncourt des Lycéens, 2010, e o Prémio do Livro em Poitou-Charentes, 2011. Fala da estadia de Miguel Ângelo (Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni) na Turquia, para idealizar a ponte de Constantinopla. E não vou dizer mais nada a não ser que o livro é maravilhosamente diferente das tretas que por aí abundam.

As imagens usadas para ilustrar o texto mostram partes da obra de Michelangelo (Pietà, David, os nus da tecto da Capela Sistina, a Sibilla Delfica).

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A música é, segundo leio no texto de apresentação no youtube: 


  • Turkish Music therapy / Hüseyni Sema: for Happiness and against fever by Cantemir *1673
  • Ottoman Turkish Healing/Sufi Music - Segah Peşrev - Osman Bey *1816 - against depressive disorder
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E porque a noite já vai longa despeço-me já e só espero que isto não esteja cheio de gralhas, seria uma mácula imperdoável no texto. 

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira.

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16 comentários:

Bob Marley disse...

Hoje é dia de dizer adeus ao Windows XP

É o equivalente ao ter dito adeus ao windows 95 E WINDOWS 3.11

e vai ser o equivalente a dizer o adeus ao windows 7 (2020)

só não percebo é porque ainda não há data para o VISTA, DEVE SER A MENINA DOS OLHOS DE ALGUÉM EM REDMOND

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bob Marley disse...

Caro Tiago, com um teste de dna - http://pt.wikipedia.org/wiki/Teste_de_paternidade, não se resolve mais eficientemente o problema e com menos latim.

O problema do direito é que tem muito espírito,tanto, que a nossa justiça anda assombrada.

já para não falar no caos normativo, que só quem paga serviços de consulta é que tem a informação de fácil pesquisa.

o estado gastou 1 milhão (que se saiba), no novo portal do dre, teve no ar 2 horas, ouviu falar mais dele.eu não

Anónimo disse...

Uma boa sugestão de leitura. Não conheço o livro, mas vou, um dia destes, procurar e ler.
Ao que consta, todavia, Michelangelo nunca terá estado em Constantinopla.
Interessante é Rafael ter estado presente por ocasião da apresentação da 1º parte da abóbada da Capela Sixtina, com Julio II, o Papa guerreiro e pederasta, promotor das artes na Roma depois de Alexandre VI (o devasso e mulherengo Papa Borgia, que Júlio II, homossexual, detestava).
É interessante ler as relações, à época, entre Michelangelo, Bramante (retratado por Michelangelo na figura do Profeta Zacarias, contrariando, em parte, as más relações entre ambos, como se fazia constar e consta ter fundamento - ?) e Rafael – e o Papa Julio II.
Os pintores, escultores e arquitectos, sobretudo os mais famosos, da Renascença italiana, deixaram-nos uma herança artística absolutamente extraordinária! Património europeu e de todos nós, hoje.
P.Rufino

Anónimo disse...

O que JV veio aqui trazer! Interessante. Um dia falamos disto. Num caso anterior, que contemplei, de uma rapariga de 17 anos que tinha mantido relações sexuais com 3 parceiros, ao mesmo tempo, propôs-se uma análise de ADN, que ela recusou, pois um deles assumiu-se como pai, o que ela aceitou (os outros desapareceram de vista) e assim se acabou por resolver a questão da paternidade!
O Direito é, embora por vezes muito maltratado, uma arma de arremesso em Democracia e na Justiça...sabendo usá-lo.
Na Revista da Ordem dos Advogados de Janeiro deste ano são ali suscitadas algumas questões, de diferentes aspectos, que davam um bom tema de discussão para o programa da Fátima Campos Ferreira, o tal Prós e Contras.
P.Rufino

Bob Marley disse...

a reter (Portugal volta), a nossa lógica parece que é diferente da europeia - http://www.publico.pt/sociedade/noticia/portugal-volta-a-ser-condenado-no-tribunal-europeu-dos-direitos-humanos-por-violacao-da-liberdade-de-expressao-1631375


ou o caso da neta que não vê os avós paternos a 3 anos, porque a mãe conhece a lógica do sistema

Bob Marley disse...

uma das frases que mais gosto - http://kdfrases.com/frase/156159

Unknown disse...

Ocorreu um lapso no log in quando fiz o outro comentário. Como não posso escrever utilizando o nome de outras pessoas, removi-o e acho que não vale a pena publicá-lo de novo.

Bob Marley, uma presunçãozinha dá sempre jeito. Com ela, já não é preciso teste de adn. O pretenso pai se quiser elidi-la, tem então de fazer mesmo o teste para provar que não é pai. É claro que o teste de adn resolve praticamente todos os problemas, mas a norma é engraçada e eu ainda estou na fase de brincar com elas e não com pessoas a sério. ;)

JV

Bob Marley disse...

pelo menos não estamos sozinhos - http://www.tvi24.iol.pt/503/acredite-se-quiser/bebe-paquistao-crianca-homicidio-apedrejamento-tvi24/1549639-4088.html

Bob Marley disse...

um dos motivos pelo qual não posso espumar muito quando falo de Sócrates, é que ele ajudou a tornar o art.º 6 (http://www.igf.min-financas.pt/leggeraldocs/DL_47344_66_COD_CIVIL_1.htm#CODIGO_CIVIL_ARTIGO_6) do código civil, mais realista, pelo menos no que diz respeito a ignorância (http://dre.pt/pdf1sdip/2006/06/115A02/00120014.pdf), quanto a interpretação estamos entregues ao humor, dos juízes.

espero que a pesquisa livre e booleana, um dia seja livre também

porque o segredo dos grandes gabinetes de advogados, não é por serem mais inteligentes, que os outros.é porque têm uma trupe para vasculhar a legislação, outra trupe para vasculhar a jurisprudência, para depois entregarem á trupe propriamente dita que vai julgar, já tudo bem filtradinho, e com aquelas alíneas marotas, bem identificadas

Anónimo disse...

Comungo da desconfiança de B.M relativamente aos escritórios de advogados. Uma boa parte deles, sobretudo em Lisboa sao hoje cada vez mais uma rede de trafico de influencias do piorio. De coluio politico, etc.
E JV tem razao no que diz.
P.Rufino
PS: estou hoje com um problema estranho no computador.

Bob Marley disse...

como o nosso direito molda a bugalha das pessoas.

"2 + 2" para uma pessoa normal é 4, para uma pessoa do direito também é 4 , mas vamos sempre encontrar alguém que contesta o resultado

"2 e 2" para uma pessoa normal não é nada, para uma pessoa do direito, é 4 se for para pagar e 22 se for para receber

o meu professor de fiscalidade, pessoa bem cotada a nível nacional como profissional, e para mim um ser humano do melhor que há, dizia que era um pesadelo, quando tinha que ir como testemunha explicar contas a um juíz

Anónimo disse...

Bob Marley,
Não exageremos. Se alguém tem de depôr como testemunha, nada tem a recear. Já com o arguido (vulgo réu)as coisas são diferentes.
Compreendo que hoje a Justiça esteja cada vez mais afastada dos cidadãos e nesse sentido eles tenham uma atitude de suspeita relativamente a ela, Justiça, mas tomemos a nuvem por Juno!
Mas, seja como for, não quero, com isto, estar a criticar o que diz, muito pelo contrário. é, tão só, uma forma de tentar fazer com que a Justiça não se afaste de quem deve - as pessoas em geral.
Cordialidade!
P.Rufino

Bob Marley disse...

Infelizmente Sr.P Rufino a realidade, mostra-nos casos, que nos fazem , benzer , antes de entrar num tribunal.Dito por um juíz conhecido, evita ir a tribunal.e olhe que ele tem razão

metemos o antigo administrador do prédio em tribunal, deixou-nos na conta 1.35 euros.Recebemos a dias a carta a informar o arquivamento, nada de novo dada a postura da juíza na altura.parecia que nós é que éramos os gatunos.
Diz que não há evidência, de apropriação,bastava considerar o fundo de reserva, que desapareceu e não houve obras no prédio.mais as facturas atrasadas que tivemos de pagar dos elevadores, pois não pagava a meses.

tem a documentação em posse dele e nem isso o tribunal ainda obrigou a devolver.Já lá vão 2 anos e pico

metemos recurso hierárquico

Bob Marley disse...

Eu sempre achei este país bom, mas agora fiquei com uma dúvida, ou ele era bom e agora ficou mau, ou ele já era mau e eu é que andava inocente

ouvimos na rádio, a debitarem os n.ºs de desemprego, tornou-se uma rotina diária

deviam trocar por um mural, onde se visse escrito coisas destas.

"aceito trabalhar a troco de subsídio de alimentação", vi hoje de manhã, horrível

fez-me lembrar numa frase de Estaline (uma morte singular é uma tragédia, milhões é estatística)

temos que abordar o desemprego como mortes singulares

Anónimo disse...

Meu caro Bob Marley,
Fico espantado com o que me diz aqui. A ser assim, o vosso advogado é incompetente! Um caso desses é crime - refiro-me à atitude do administrador do prédio. Não vou agora enumerar os Artºs do C.P. Já lidei com casos desses, de inquilinato descurado. No vosso caso é inaceitável! O problema é que muitas das vezes as pessoas não precisam de advogados, mas, tão só, de aconselhamento jurídico e com isso muita coisa se resolveria a contendo e sem praticamente despesas nenhumas! Neste vosso caso, se o administrador percebesse que poderia ser constituído arguido (sem despesas de espécie alguma para vós, os inquilinos, ou seja, os participantes da potativa queixa-crime)iriam ver que tipo, diferente, de reacção ele teria!
Meu caro, sempre ao dispôr!
P.Rufino