domingo, maio 15, 2016

A primeira noite de amor




Foi de uma grande tristeza para Pedro entrar na que tinha sido uma das mais amadas casas da família. Lembra-se de, desde sempre, ali se reunir o núcleo mais chegado: avós, tios, pais, irmãos, primos. Ao longo dos anos, uns foram partindo, outros chegando. Pelo natal era ali que se juntavam. Muitos baptizados ou aniversários ali eram festejados. Depois resolveram abrir a casa a eventos da empresa mas, para ele, isso era apenas alargar o núcleo que podia apreciar aquele ambiente tão acolhedor.

Quase lhe parecia impossível caminhar por aquelas salas e pensar que ali vivia agora uma outra família. Estava enervado, num estado de grande ansiedade. Clara ia a seu lado e isso era um apoio sem o qual ele talvez não conseguisse seguir em frente.

Foi-lhe doloroso. 

Os novos donos da casa foram simpáticos. Falavam um português atravessado e explicaram que viveram algum tempo em Macau. De vez em quando apoiavam-se na língua inglesa. E sorriam muito. Sendo pessoas de outra cultura, não deixaram, contudo, de demonstrar uma certa compreensão pela situação. Deixaram que Pedro fosse até à biblioteca, deixaram que passasse as mãos pelos livros, que estivesse o tempo que quisesse. Mas foram claros: tudo o que lá estava fora comprado por eles, a casa e o conteúdo, frisaram várias vezes. 

Pedro estava demasiado tenso e frágil para poder contestar. De resto, o que diziam era verdade - por isso, contestar o quê? Restava-lhe pedir. Mas, para pedir, tem que se ter estrutura para aguentar um não e ele não a tinha. Clara tentou uma outra abordagem sobre a qual já tinha, antes, conversado com Pedro: não estariam disponíveis para fazer uma doação à vila? Ficariam muito bem vistos junto da comunidade. A ideia apanhou-os de surpresa mas continuaram inflexíveis: a biblioteca fazia parte do seu património.

A meio tocaram um sino. Maria de Lurdes apareceu, cabeça baixa. Perguntaram o que Pedro e Clara queriam. Pedro pediu água, Clara um chá. Eles também pediram chá. Passado algum tempo, Maria de Lurdes apareceu com o tabuleiro. Trazia dois bules, um com um chá para os senhores e um outro para Clara. As lágrimas assomavam-lhe aos olhos quando apontou o bule e, com a voz presa, disse a Clara, 'Flor de laranjeira'. Trazia também uma cerveja mas, quando ia dizer qualquer coisa a Pedro, não foi capaz, tapou a boca, e saíu apressadamente da sala, certamente para não chorar abertamente à sua frente. Pedro foi até à janela e ali ficou por um bocado, talvez para que não vissem os seus olhos.

Depois despediram-se. Clara agradeceu. Pedro também. 

Clara perguntou a Pedro se não queria despedir-se de Maria de Lurdes. Ele disse que não. Clara não insistiu. Sentia que o coração de Pedro estava infeliz e que os laços que o uniam ao corpo e à mente eram cada vez mais frágeis.

Andaram a pé durante um bocado até que, sendo já tarde, entraram no carro. Clara ligou o rádio. Pedro ia a seu lado, o olhar perdido.

Perguntou se não queria que jantassem juntos. Pedro não quis. Saíu do carro e caminhou como um pobre velho. Clara chamou-o. Ele demorou a olhar para trás. Depois virou-se. Clara disse-lhe: Pedro, um dia as coisas vão mudar. Não desista. Amanhã venho buscá-lo e vamos ver o mar. Pedro nada disse. Clara fez-lhe adeus. Pedro disse apenas Obrigado.

Clara ficou ali um bocado parada. Depois arrancou. Todo o caminho chorou. 

Quando chegou a casa, sentia-se esgotada. Despiu-se, tomou um prolongado duche, comeu iogurte, cereais, fruta. Depois afundou-se no sofá. Não sabia que mais sugerir a Pedro para lhe dar força para se erguer. Sabia que a cada dia que passava novas provações ele tinha que passar: acusações, processos, interrogatórios, inquirições, investigações que o deixavam arrasado, sem esperança de alguma vez poder voltar a  ter uma vida normal. De facto, Clara não sabia onde arranjava Pedro forças para continuar a aguentar aquele permanente remexer em memórias que ele desejava esquecer ou a reconstituir ocorrências que agora lamentava.

Era já tardíssimo, quando conseguiu adormecer.

Devia ter passado pouco tempo, ouviu o telemóvel. Sobressaltada, levantou-se. Pensou logo que alguma coisa de muito má devia ter acontecido. O coração batia-lhe descompassadamente, nem conseguia pegar no telemóvel, toda ela tremia. Temia ouvir a notícia que há algum tempo receava

Quando viu um número desconhecido ainda mais se assustou. Por fim, atendeu. Uma voz feminina desconhecida. Contudo, o sotaque fê-la reconhecer: era a mulher chinesa da casa da vila.

Clara quase se acalmou, pensando que se calhar era alguma notícia má relativa a Maria de Lurdes. A mulher disse: Pedi ao nosso advogado o seu contacto. Ele não queria dar. Disse-lhe o que era, pedi muito. Então deu. Desculpe estar a telefonar a esta hora. Não quis esperar. Queria dizer a si que tive muita pena do senhor. Pensámos no que disse. O meu marido não queria. Mas agora aceitou. Quero falar consigo. Vamos oferecer a biblioteca à vila. Queria pedir que a senhora nos ajudasse. O Senhor Pedro vai gostar. Ele pode ajudar. 

Clara sentiu que um arrepio a percorria, sentiu-se a tremer, sentiu que, de novo, os olhos se enchiam de lágrimas. Agradeceu muito, muito, disse que eram boas pessoas, que a vila ia ficar agradecida, que era um gesto muito bonito. E combinou ir lá no dia seguinte e outra vez obrigada, obrigada, senhora, obrigada também ao seu marido.

Depois enfiou umas calças, uma camisola, calçou uns sapatos e, a correr, meteu-se no carro e dirigiu-se a casa de Pedro. Quando ele abriu a porta, ar cansado, muito envelhecido, Clara abraçou-o, muito. Contou-lhe. Ficaram abraçados.

Nessa noite fizeram amor. De amanhã, ainda estavam abraçados.

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Este episódio vem no seguimento de 'Bater no fundo' que, por sua vez se sucede a outros cujo caminho lá poderão encontrar. E continua com 'De quantas camadas de pele tem um homem que se despir até que os outros percebam que está em carne viva?'

(Tenho que arranjar nome para esta história para depois a poderem encontrar através da lista das etiquetas.)

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Lá em cima Milica Ilic (soprano), Victoria Lambourn (mezzo soprano) com a Tasmanian Symphony Orchestra conduzida por Andrew Greene, interpretam o Flower Duet de Lakmé de Léo Delibes

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Abaixo poderão encontrar a minha opinião sobre o texto de Fernanda Câncio sobre o Caso Marquês e ela .

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2 comentários:

Rosa Pinto disse...

Continue!

Uma noite de amor...sentir a vontade de transgredir..

Rosa Pinto disse...

O amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro.
Ah, troço de louco,
corações trocando rosas
e socos...
Paulo Leminski