Conheci a Paula Rego em 1985 – vim de Portugal como au pair para ajudar o marido dela [o artista Victor Willing] que tinha esclerose múltipla. Os seus filhos estavam crescidos pelo que eu não precisava de cuidar deles. Foi um ótimo tempo. Dei-me bem com a Paula desde o início. Vi-a pela primeira vez quando ela estava prestes a sair para o teatro - ela era muito glamorosa. Ela disse "Olá" brevemente e acrescentou que sentia muito por se ir embora e disse-me que me veria mais tarde naquela noite ou no dia seguinte. Saí e, quando voltei, a Paula estava a tomar uma taça de champanhe com uma de suas filhas, a Vicky, e convidaram-me para tomar uma – claro, tomei várias – e foi uma ótima noite.
A Paula tinha o dom de deixar as pessoas à vontade. Era uma boa ouvinte, interessada no que dizíamos, dedicava tempo às pessoas, não fazia julgamentos. Falávamos sempre em português. Não sei se ela sentia saudades de Portugal, mas conversávamos muito sobre isso: o comportamento dos portugueses, a política, a culpa e a vergonha associadas ao catolicismo, e falávamos sobre ser mulher.
As minhas funções eram ajudar o Vic com as suas pinturas e transferi-lo de sua cama para uma cadeira de rodas. Paula mostrou-me como esticar uma tela. Não falávamos sobre como esse momento era difícil para ela – ela seguia em frente. Ela preparava o café da manhã para o Vic, partia para o estúdio e, na maioria dos dias, voltava a tempo de preparar o jantar dele. Tenho a certeza que foi por eu fazer parte do cenário doméstico que Paula e eu nos aproximámos tanto. As nossas conversas eram principalmente sobre trabalho porque era através do trabalho dela que tudo acontecia. Quando o Vic era vivo, ela trazia trabalho para casa, pendurava-o na parede e ele comentava, dava conselhos. Depois de ele ter morrido, ela dizia sempre que sentia falta dele e que era muito difícil sem ele. Ela teve que fazer tudo sozinha e isso foi muito difícil.
Pensando bem, acredito que ela estava a lidar com uma depressão há muito tempo. Aprendeu que a maneira de lidar com isso era continuar a trabalhar. Num domingo, ela disse: “Posso fazer um desenho seu?” Eu nunca tinha servido de modelo antes. Não pensei nisso, só estava a tentar ajudar – simplesmente aconteceu. Lembro da Vicky a dizer: “Não podia acreditar, fui lá em casa e lá estava você, como a coisa mais natural, posando para a Paula...”
Paula e eu mantivemos contato e, em 1994, ela ligou para perguntar: Poderia ir ao estúdio? Então, no meu dia de folga – eu trabalhava como enfermeira – eu vim e foi aí que [o quadro] Mulher Cão começou. Às vezes, Paula contava-me a história em que estava a pensar. Noutras ocasiões, ela tentava uma pose para mostrar o que estava a procurar. Assim que eu me posicionava, ela dizia: “Muda esse braço, muda o pescoço”. Outras vezes dizia: “Sim! É isso." Ela fazia muitos desenhos para encontrar o que procurava… Uma das poses mais difíceis foi em 1995 – a pintura de uma mulher onde não fica claro se ela está a puxar as cuecas para cima ou para baixo. Todo o meu corpo tinha que estar rígido. Foi muito difícil – os meus joelhos dobravam-se – tive que ficar parada por horas.
A Paula gostava de rotina. Trabalhávamos das 10h às 19h. A primeira coisa, tomávamos café e conversávamos, e isso podia durar 10 minutos ou duas horas, dependendo de como fosse a conversa. Eu dizia: “Escute, estamos a conversar, a conversar – temos que trabalhar”. E ela dizia: “Tudo isso faz parte do trabalho”. Desenvolvi um modo zen, distanciei-me da pose. Eu não iria olhar para o que ela estava a fazer. Ouvíamos ópera pela manhã – bem alto. A Paula tinha um sentido de humor maravilhoso. A estranheza de outras pessoas fazia-a rir, como as pessoas reagiam – a comédia da linguagem corporal. Costumávamos chamá-lo de “aquela coisa”.
A Paula uma vez disse sobre mim: “Ela é realmente eu mesma”, e o que ela quis dizer, eu acho, é que ela podia ver através de mim e revelar o que quer que estivesse na sua mente. Não é a mim que me vejo nas pinturas, é principalmente a ela – à sua vida interior – e às vezes não é nenhuma de nós. Nunca penso: aquela ali sou eu. Penso: lembro-me daquela pose, como era difícil.
A saúde da Paula começou a piorar por volta de 2009 e ela disse: por que não passa a trabalha para mim a tempo inteiro? E assim fiz. Ela continuou a trabalhar todos os dias até quase ao fim. E quando ela estava muito doente para ir ao atelier, ia eu a casa dela e passávamos o dia a desenhar com pastéis. Ela continuou, não desistiu.
Mesmo agora depois da sua morte – pensarei sempre nela e verei coisas que seriam boas para o seu estúdio. Eu costumava comprar os adereços. Sempre que eu saía para fora, voltava com coisas: bonecas brasileiras, roupas de criança, um sombrero de Monterey. Certa vez, a Paula pediu-me para encontrar um papagaio de cerâmica numa viagem a Brighton. “Precisamos de um papagaio”, disse ela. Não consegui ver muitos papagaios em Brighton, mas encontrei um.
A sua morte deixou uma lacuna na minha vida. Agora encontro-me num limbo. Sem saber o que fazer. Sinto muita falta dela. Ela era muito generosa, mas a sua confiança em si mesma era facilmente derrubada: uma crítica negativa poderia fazer isso. Ela trabalhava e trabalhava, mas precisava de alguém que lhe dissesse que o trabalho era bom. Quando começámos aqui, quase ninguém vinha ver o trabalho até que estivesse pronto. Ela não atendia o telefone, as pessoas deixavam mensagens. Talvez a dúvida fosse necessária para o trabalho. Lembro-me dela a dizer: “Não, não, não…” antes de fazer uma qualquer mudança numa pintura. Eu pensava: “Ai meu Deus... mas estava tão bom...” Só depois de ela fazer a alteração é que eu percebia.
Não sei se, mesmo no final da vida, ela sabia o quanto era amada e respeitada como artista. “Lila, imagine, a Tate vai fazer uma retrospectiva”, disse-me. E eu disse: “Pelo amor de Deus, já deveria ter sido feita há muito tempo.” A visibilidade do ano passado deu-lhe um impulso maravilhoso – ela foi à abertura e foi fantástico. Quando fui, senti... vi o fim.
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Cometi a ousadia de aqui ter o artigo na íntegra uma vez que o jornal é de leitura aberta (embora apele à generosidade dos Leitores). A tradução foi feita a meias entre mim e o tradutor da Google a partir do artigo Paula Rego remembered by Lila Nunes no The Guardian integrado na série The Observer's obituaries of 2022
A fotografia lá em cima mostra Paula Rego no seu estúdio em 2018 e é da autoria de Phil Fisk/The Observer. A segunda, propriedade de Lila Nunes, mostra-a com Paula Rego em 2018.
A pintura é Dog Woman, 1994, de Paula Rego (com Lila Nunes como modelo). Fotografia: Copyright Paula Rego, Cortesia Marlborough Fine Art’
A música, "Un bel dì vedremo (Madama Butterfly)" de Puccini por Renata Tebaldi, é uma escolha minha
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Paula Rego viveu entre 26 de janeiro de 1935 e 8 de junho de 2022
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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira
Saúde. Compreensão. Paz.
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