segunda-feira, junho 13, 2022

Com vossa licença, agora vou falar um bocadinho a sério

 


À hora de almoço, já por volta das três da tarde, liguei a televisão. Não sei qual o canal ou o programa mas sei que se apresentavam equipamentos que aliam a inteligência artificial à realidade aumentada. Mostravam como um cirurgião pode estar a operar e, através dos óculos, não apenas vê o doente como vê imagens ou instruções relacionadas com o que tem que fazer. Ou como a cirurgia pode decorrer sob orientação de um outro médico num outro país. 

Nada disto me é estranho. A par dos avanços a nível da computação (tantas vezes tão perigosamente desregulada*) há os avanços a nível das comunicações. Quando se faz uma incisão ou quando se tem que extrair um tumor não se pode ficar à espera que as comunicações se refaçam, caso vão abaixo ou caso haja um delay que ponha em perigo a saúde do paciente. 

Agora, com as tecnologias 5G (e 6G) e com a computação na nuvem, poderosa, ubíqua, a ciência médica está numa daquelas fronteiras em que, daqui por algum tempo, olharemos para trás e ficaremos espantados com a falibilidade e demora nos resultados dos exames, na falibilidade na interpretação e diagnósticos por parte dos médicos.

Só que, no mesmo dia, era notícia de abertura a falta de médicos nas urgências e as fatais consequências que isso está a provocar. Várias urgências fechadas em várias especialidades. Um bebé que se perdeu por falta de assistência atempada. E não sei se foi o único.

A ideia de que uma mãe, depois da alegria e ansiedade da gravidez, quando vê chegada a hora, não tem quem a acuda, deixa-me muito perturbada, parte-me o coração.

Há poucos médicos no país e há pouca organização nos hospitais. Não sei se os horários estão bem feitos, se as escalas estão ajustadas. Mas sei que quando se fazem horas extraordinárias, em especial ao fim de semana, se adquire o direito a dias de compensação. Fazer horas extraordinárias é uma bola de neve de custos e ineficiências. Quando se gozam esses dias de compensação, como as equipas estão curtas, alguém terá que compensar, fazendo mais horas extraordinárias. Mas há limites legais às horas extraordinárias. Portanto, é um círculo vicioso do qual é difícil sair.

Supostamente, não se podem gozar férias ou compensações sem autorização. Por isso, se os médicos e enfermeiros foram todos gozar férias ou dias de compensação durante estes dias de junho é porque alguém os autorizou.

Mas para isso, as chefias têm que estar a ver os dias de férias que as pessoas pretendem gozar e têm que avaliar se não estão a ir vários ao mesmo tempo. Se as chefias não o fazem, quando se dá por ela, chega o dia e a escala está incompleta. E se faltam enfermeiros, anestesiologistas, técnicos de eletromedicina ou médicos, a equipa não pode funcionar. Fecha o serviço.

Ou seja, a ciência avança a toda a velocidade em tudo o que é de ponta mas descura-se o básico, descuram-se os processos. Aí onde deveria haver automatismos para racionalizar horários e escalas, automatismos para calcular o número de técnicos, enfermeiros, auxiliares, técnicos, médicos por especialidade, não há nada que se aproveite. É tudo a olho, à mão, ingerível, sujeito a todo o tipo de falhas e erros..

Não sei quais os projectos que o PRR vai financiar mas a área da organização, da automatização de processos em organizações complexas, deveria estar contemplada. Sem gestão, sem boa gestão, sem gestão controlada, nada funciona.

E não apenas a da automatização de processos deveria estar contemplada: também a da construção de modelos de apoio à decisão. 

A Investigação Operacional -- e, no caso dos Hospitais, a teoria das Filas de Espera -- deveria ser obrigatória. Atendendo à sazonalidade das doenças, à criticidade das enfermidades e à reputação da instituição que se pretende manter, consegue determinar-se qual a duração máxima admissível para uma espera numa sala de atendimento hospitalar. Haverá casos em que a espera pode chegar às duas horas e daí não virá mal ao mundo. Mas se chegar às seis ou oito, de forma continuada ou se alguém morrer sem ser atendido, aí ter-se-á pisado a linha vermelha. Com o indicador do tempo máximo de espera, a estimando-se o afluxo de doentes e a duração média de atendimento, consegue determinar-se qual o número de equipas de atendimento. 

Nada disto é transcendente. Mas requer conhecimento, requer compreensão pelos factores que influenciam o comportamento dos sistemas, requer investimento, requer liderança.

Muitas vezes tudo isto parece óbvio e, no entanto, não se consegue levar adiante pois haverá sempre alguém que se opõe, alguém que não acredita, alguém que boicota, alguém que desiste perante as dificuldades.

E, no entanto, enquanto isto não for encarado sem os holofotes do mediatismo e sem a leviandade dos néscios, somos nós, os utentes, nós que quando ficamos doentes nos sentimos impotentes e indefesos, que ficamos à mercê de uma máquina complexa -- em que uns estão cansados, outros desmotivados, outros distraídos, outros contrariados -- que nos pode deixar entregues a um acaso que, por vezes, não é misericordioso.

Mas uma coisa é o cálculo digamos que mais ou menos científico dos recursos necessários por especialidade -- outra é a capacidade para pôr em prática o resultado dos cálculos. Por exemplo, se não houver recursos, não os podemos inventar.

Então, é preciso alargar o âmbito da análise e, neste caso, pensar a montante. 

Não seria difícil às equipas de investigação das Matemáticas determinar o número de vagas que deveriam ser abertas nos próximos anos das Faculdades de Medicina para optimizar o preenchimentos das necessidades (seja no Público, seja no Privado). Se há x doentes disto, y daquilo, localizados geograficamente consoante uma distribuição conhecida, se em média, as pessoas de cada grupo recorrem às urgências ou ao ambulatório z vezes por ano, se isso desencadeia internamentos em w% dos casos, se implica t% de cirurgias, etc, etc, então, deve haver n médicos de cada especialidade e o mesmo para as restantes categorias profissionais. Conjugue-se isso com a idade dos que hoje trabalham para prever quando saem do activo e conseguir-se-á chegar à matriz das necessidades.

Ouço dizer que é a Ordem dos Médicos, podre de corporativismo, que boicota a abertura de vagas nas Escolas de Medicina. Não sei se é, se não. Mas sei que as políticas públicas e a necessidade nacional devem ter prioridade sobre os interesses de classe.

¨[via PdC]

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Caminhamos, pois, a diferentes velocidades. As tecnologias avançam, a ciência avança. Mas a organização e a compreensão do que deve ser feito para que a organização seja mais eficiente não avançam. Pelo contrário, por vezes até parece que regridem.


Isto é agravado, naturalmente, pela maior longevidade das pessoas, que acarreta mais doentes a tratar durante mais anos e, cada vez mais, pelas epidemias, pelos novos vírus, por uma série de ínfimos organismos em transumância dos bichos para os homens e, se calhar, dos homens para os bichos, pelas doenças resultantes de um planeta cada vez mais exausto, instável e febril.

Sabemos sequenciar os genomas, sabemos fotografar estas células misteriosas que imobilizam o mundo. Mas não sabemos como evitar ficar reféns delas nem como restituir as coisas à sua normalidade primordial.


Já aqui o disse várias vezes: deve haver grupos de reflexão que identifiquem os grandes desafios dos próximos anos. São muitos e todos eles urgentes. Prioritizá-los e arranjar recursos humanos e financeiros para os tratar requer uma conjugação de ideias. E quem deve contribuir para essas ideias não devem ser os assessores de pacotilha que pululam pelos centros de poder nem os amigos dos amigos dos amigos. Não: tem que ser gente com cabeça e que contribua com ideias para o bem de todos, sem pensar no seu próprio bem.

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Há uns anos, muitos, um amigo foi passar férias a Marraquexe. Quando chegou vinha encantado com os hábitos daquelas gentes mas dizia que mau, mau, tinha sido o calor. A temperatura era elevada, a humidade baixa. Falava: para cima de 40º, insuportável. Nessa altura, eu era ainda muito novinha, não tinha ideia de ser habitual temperaturas tão elevadas, custava-me até pensar como seria possível viver com temperaturas tão elevadas. Agora, por cá, temperaturas assim começam a entrar na nossa habituação. Mas o que custa... Estes dias têm sido terríveis, um calor abafado. E sabemos que não vai voltar ao que era antes pois estamos na recta ascendente das temperaturas.

O mundo não está a ser capaz de inverter a tendência da decadência do planeta. A habitabilidade estará cada vez mais comprometida num número crescente de pontos do planeta. E nem falo na loucura da guerra que um qualquer psicopata pode desencadear e em que o resto do mundo fica impotente, incapaz de travá-lo.

Como será viver neste planeta daqui por um par de anos? Temperaturas insuportáveis, seca, doenças, pragas, escassez de profissionais, escassez de materiais, descontentamentos generalizados... e as instituições desorganizadas, sem recursos suficientes, desnorteadas sem saberem como acorrer a todas as necessidades?

O mal não é apenas nosso, português, mas compete a cada país traçar as políticas que invertam o declínio que parece estar a tornar-se inexorável. Seria bom que o Professor Marcelo, em vez de andar por aí num permanente carrossel de 'bocas', condecorações, visitas e abraços, pensasse no que poderia fazer para que por cá, neste nosso pequeno rectângulo, se começasse a equacionar o futuro com o pragmatismo que se impõe.

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E o futuro já aqui tão próximo. 

Por exemplo: Calor mata trabalhadores migrantes no Catar


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A música é Falling na interpretação de Julee Cruise que se foi há poucos dias

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Desejo-vos um bom Dia de Sto António
Saúde. Confiança. Paz


7 comentários:

Arménio ereira disse...

Carbon-based life forms.
Knowledge: coal fueling the vanity bonfire.
Wisdom, a diamant needed to cut through.
Not enough wisdom to avoid ending up
being consumed.

Arménio Pereira disse...

Knowledge:
- transmissible;
- dynamic;
- collective;
- external;
- language dependent;
- hosted by the brain;
- transient*;
- (determined by the) here.

Wisdom:
- intransmissible;
- static;
- individual;
- internal;
- unconstrained by languages;
- dwells in the heart;
- eternal;
- (happening) now.

* e.g., we forgot how to make concrete (opus caementicium) - namely the water/cement ratio - the way the Romans did (circa 150 BC); we forgot ("misplaced the data") how to go to the moon.

Um Jeito Manso disse...

K,.

Fale-me de si. É um savant?

Considera-se a si próprio um conhecedor ou um sábio?

Sendo tão conhecedor (e sábio?), o que encontra aqui neste lugar em que é tudo tão simples?

Vê-se a si próprio como um Mestre que, em vão, tenta educar esta tão ignorante discípula?

Conte-me.

Maria disse...

Ignore-o UJM! Elimine até esses comentários. São até perigosos, isso não é de alguém bem intencionado. É "non-sense" puro!
Compreendo a sua paciência , mas eu não publicaria, nem responderia.(desculpe o atrevimento, não tenho nada com isso...)

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria,

Até me ri. Acha? Acha que ele é maluco? Não sei... Talvez...

Eu quero crer que ele não é mal intencionado nem perigoso. Acredito que seja pessoa que vive num mundo a modos que paralelo, acredito que ele acha que existe uma realidade que ele vê e que os outros não. Talvez seja um solitário que se comunica com o mundo assim.

Quando se escreve aqui, sem se saber para quem se escreve, sem saber quem nos escreve, nunca podemos ter a certeza de que somos bem compreendidos ou de que estamos a salvo de gente estranha.

Mas tento que toda a gente se sinta ao entrar aqui e tenho esperança de que quem aqui vem, vem por bem.

Agradeço o seu cuidado, o seu carinho. Muito obrigada.

Anónimo disse...

Olá UJM!

Olhe que o problema não é propriamente falta de médicos (há alguma, mas seria resolúvel houvesse vontade). E a ministra saberá disso, pois o seu marido é estudioso da matéria: https://www.almedina.net/sa-de-2040-necessidades-de-m-dicos-e-enfermeiros-em-portugal-1563804687.html
Repare-se ainda que formar médicos AGORA também já não vai a tempo: a população vai encolher brutalmente numa década e um médico demora 10 anos a formar!! (E repare-se o que aconteceu com os professores: inventaram formações de professores a malhão e de qualidade questionável face a suposta escassez de professores nos anos 90 ao mesmo tempo que nunca se formou um quadro adequado, mantendo uma massa enorme de professores precários e de casa às costas - conseguiram sim destruir a profissão a um ponto que agora ninguém a queres que há falta de professores no sistema público!).

O problema é ainda muito mais complexo, pois vai da organização do sistema (sabia que um administrador hospitalar não tem poder para contratar médicos? Só com autorização da tutela? Que raramente atende a esses pedidos?), Ao facto de o chamado SNS já estar em grande parte privatizado (são bastas as áreas nas mãos de privados... Inclusive a contratação de profissionais para as urgências, assegurada cada vez mais por via das prestações de serviço).

Seria bom uma definição: ou bem que se assume que é para privatizar e cada um que aceda ao prestador que quiser e o estado paga a mensalidade do seguro ou esta ideia de alegar que o SNS é público mas na verdade não serve uma parte significativa da população não parece sustentável por muito tempo (as pessoas iludidas rapidamente vão concluir que preferem então que o estado lhes devolva o dinheiro e eles que se desenrasquem / procurem uma solução individual... Na verdade já é isso que muitos fazem e sem esse apoio do estado!).

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo/a,

É verdade. Mas, se não invertermos a curva demográfica, cada vez seremos mais velhos, teremos mais doenças, haverá mais cuidados. E 10 anos passam num instante. Que se comece. Que se invista.

Ou que se 'importem' médicos (e outros profissionais).

E dou-lhe razão: a forma precária que se arranjou para colocar professores é um absurdo. E a forma como se recorre a toda a espécie de subterfúgios para complementar o quadro, com recurso a tarefeiros ou com modelos de gestão híbridos falaciosos e difíceis de controlar.

Nestas coisas, acho que não é preciso inventar a roda. É ver quais os modelos que funcionam bem e tentar replicar.

Tal como agora está não funciona, isso é claro: os profissionais procuram o 'privado' que lhes dá mais garantias de qualidade de vida e, com isso, descapitalizam o 'público'. E há profissionais a menos. E há organização a menos. E há falta de planeamento.

Tenho esperança que um dia isto vai atingir o consenso e o equilíbrio. Mas, por enquanto, estamos longe.

Gostei de ler o que escreveu. Muito obrigada.

Volte sempre.