domingo, junho 12, 2022

Um sábado com saborzinho a domingo


Dia bom, tranquilo. Tinha pedido para não me acordarem mas nasci para sofrer e esta de não me deixarem dormir é cruz que parece que nasceu pregada às minhas costas: às oito e picos já eu estava a ser incomodada com um barulho estranho aos pés da cama. Era o urso com um ténis do dono, balouçando-o pelos atacadores, fazendo um chinfrim. O meu marido tinha saído do quarto e deixado a porta aberta e, claro está, o abusador-mor não perde uma oportunidade para ver o que pode fazer  de interdito. Ainda tentei dormir mas já não deu.

Fomos às compras ao centro comercial. Não quis ir sozinha e, está bom de ver, tive que vencer uma grande resistência. Tudo lhe serviu de desculpa. A última agora é: 'Coitado do cão, tem que ficar sozinho'. Sim, sim. Mas lá veio. Centros comerciais para o meu marido é quase tortura e ir para um ao fim de semana para ele é sinónimo de bater no fundo. Mas com este calor, animou-o a perspectiva de toda a gente ter ido para a praia e aquilo estar deserto. Mal entrou no parque de estacionamento e o viu cheio, ficou logo com vontade de dar meia volta. Convenci-o a ir para um piso mais abaixo pois já sei do que a casa gasta: se tem que dar algumas voltas para descobrir um lugar, fica logo mal disposto e, a partir daí, a coisa tem tudo para correr mal ou seja, ainda não entrou e já está deserto para se vir embora..

Curiosamente, por sua alta recriação, lembrou-se de aproveitar a ocasião para comprar uns jeans. Aqueles com que mais anda estão velhos, largos, já sem ponta por onde se pegue. Por mais que eu lhe diga que vista outras calças, diz que se sente bem com eles. Lavam-se e vestem-se, lavam-se e vestem-se. Só ainda não se desfizeram porque a ganga deve ser de boa qualidade. Mas estão coçados que só visto. Não gosta de sentir a roupa justa pelo que não adere às modelos fit nem por mais uma. Na loja pegou numas, tradicionais na cor e no corte, foi ao provador e dali para a caixa. Não experimentou outros modelos nem outros tamanhos. Mas pronto, vá lá, aleluia, pelo menos comprou uns jeans.

É tão raro ir agora ao shopping que tenho sempre vontade de dar um giro a ver em que param as modas. Mas o meu marido é a antítese do consumidor ideal. O nosso propósito era um e não admite um milímetro de desvio. Claro que eu poderia ter ido à revelia mas como continuo em processo de rehab, também não insisto. Continuo a achar que não tenho falta de nada. 
[Contudo, no outro dia, por acaso cedi à tentação. Num dos dias em que fomos para o campo depois do trabalho, fomos buscar o jantar a um restaurante e, entre o escolhermos e o irmos buscar, demos uma volta por ali. E, então, vi uma loja de roupas gigante. Uma loja chinesa, como é bom de ver. Já passava das oito e eles abertos. Claro que o meu marido se passa 'Dizes que não tens falta de nada mas nem a um chinês resistes.' Não quis saber, fui dar uma circulada. E vi umas blusinhas bonitas e uns calções brancos a bom preço (uso imenso calções brancos e estou sempre a precisar, pois quero ter no campo e aqui em casa, e já se sabe que coisas brancas se sujam bastante; ou melhor, mal se sujam, nota-se logo). Uma das blusinhas, em florzinhas azuis, muito fresca e bonita, tinha umas cavas largas demais. Trouxe na mesma e pedi à minha mãe para ver se podia ajustar debaixo dos braços. Fartou-se de protestar. 'Mau corte, fazem tudo mal feito, descose-se para arranjar e depois é uma chatice porque as costuras e os pespontos parece que são feitos de outra maneira, é difícil bater certo'. Pedi que não complicasse, que cortasse e refizesse a costura. Diz que ela é que sabe, que não gosta de fazer 'albardices' e, que, se lhe peço para arranjar, é para ficar bem arranjado. Pronto, ok.]

Mas, tirando isso, é abstinência. Não preciso mesmo de mais nada. 

Mas a tentação ainda chama por mim. Por exemplo, a perfumaria. Olhei e vi um cartaz com promoções. A vontade de lá entrar e estar a experimentar perfumes só eu sei. Por acaso, numa das lojas, ao pagarmos, tinham testers de perfumes da marca da casa junto à caixa. Pulverizei um braço e um bocado do vestido apesar de ser perfume de homem. Foi mais forte que eu. Quando entrámos no carro, o meu marido admirou-se: 'A que é que cheira? Não me digas que puseste perfume?'. Pois foi. 

A seguir ao almoço, reclinei-me no sofá e pus-me a ver uma série na Netflix. Gosto de séries e filmes escandinavos. Chateia-me é ter que estar a ler as legendas porque não pesco uma palavra. Mas, enfim, é o que é. A verdade é que gosto bastante. Aqui não há muito tempo, num fim de semana, vi o Toscana. Agora estou a ver Dois Verões. Não há cenas às escuras em que a gente não vê metade, não há tiros nem perseguições, não há macacadas parvas. Há luz, boas interpretações, histórias simples mas bem urdidas. É do que ando precisada. Não me apetece puxar pela cabeça nem pela visão.

De tarde, tivemos cá meia trupe, como sempre bem dispostos e ruidosos. A outra metade andava pelos santos, a petiscar e a flanar. Íamos recebendo fotografias deles, verdadeiros turistas, ora de trotineta ora nos comes. Lisboa sempre bela e animada, acolhedora para quem a quiser viver.

Às tantas, por cá, eu estava a fazer uma coisa que o meu dog guard deve ter interpretado como se eu me estivesse a colocar em risco. Então, tentou impedir-me. Tentou agarrar-me, encavalitou-se em mim a bater castanholas com os dentes, coisa que eu acho que ele usa como manobra intimidatória. Eu dizia-lhe: 'Que estupidez é essa? Aiii!!!! Quieto!!!!' coisa que agora já costuma resultar mas que, no caso, não surtiu efeito. Então, nesta manobra, cheguei-me para trás sem ver que um dos meninos estava atrás de mim. Ou seja, caí por cima dele. Levantámo-nos todos a rir com o moche que a avozinha fez ao netinho. Claro que, com todos estes reboliços, a pequena fera fica meio desatinada. 

Nestas alturas, o meu marido retira-se. Creio que vem deitar-se no sofá da sala, não sei se a ver futebol se a dormitar. Hoje, o mais velho, quando se estava a despedir, disse que o avô tem cenário ou que tem estilo, qualquer coisa do género. Ficou admirado. O mais novo confirmou, pelos vistos também acha. Sendo de poucas palavras e zero gestos de carinho, a verdade é que os netos gostam mesmo dele. Achei graça. 

Jantámos na rua. Não tive que fazer nada, apenas compor uma salada. Foram os restos da churrascada da véspera. O terraço com o jasmim e as buganvílias em flor, a noite quente de um dia grande, o lusco-fusco já com as luzinhas solares, fica um cantinho acolhedor. Gosto de luzinhas, grinaldas com luzinhas. Arranjei umas bolas brancas muito simples. Fica bonito. 

E, pronto, nada mais a reportar. Não vi televisão, não sei de notícias, não li, não fotografei, não cozinhei. Por isso, hoje não passa disto, cenas desta minha simples vidinha.


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Numa tentativa de vos oferecer qualquer coisa para que a passagem por aqui não seja completamente dada por perdida, eis um vídeo em que um assistente de bordo ilustra as instruções de segurança a bordo de forma assaz criativa e bem disposta. 


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Pinturas de Alma Thomas ao som de Água de Beber, de António Carlos Jobim, pelo Stringspace

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Desejo-vos um bom dia de domingo
Saúde. Ânimo. Paz

2 comentários:

Arménio Pereira disse...

Accomplished maturity: the mastering of enough lexicon to be able to sustain a plethora of opinions, from the most petty to the most wacky.

Maturidade bem-sucedida: ter o suficiente domínio do léxico para poder sustentar um sem-número de opiniões, desde a mais mesquinha até à mais esdrúxula.

Um Jeito Manso disse...

K.,

Leio o que escreve e fico sempre na dúvida sobre se devo tentar descodificar ou deixar assim, abstracto. Mas gosto. Um dia vou juntar tudo a ver como fica, sequencial, no mesmo espaço. Haverá um roteiro no que escreve?

Ou o roteiro está nas letras das canções que vai escondendo debaixo das pedrinhas?

Muito bonitas as canções de hoje. Não conhecia, claro. Nem as canções nem quem as canta. O munto é vasto, vasto, vasto. Não conheço nada deste mundo. Tudo para mim são surpresas.

Muito obrigada.

Uma noite descansada, um dia bom.