quarta-feira, junho 29, 2022

A estranheza em mim

 


Foi como se tivesse chegado a um lugar antes familiar e, estranhamente, agora já não o fosse. No lugar que costumava ser o meu estava agora instalada uma outra pessoa. No lugar em que antes estava o meu amigo e onde eu tanto ia dar dois dedos de conversa estava agora uma pessoa desconhecida. No espaço onde estavam 'os meus' estava agora um grupo de desconhecidos. Queria perguntar pelos que conhecia e não sabia a quem me dirigir. Não conhecia ninguém.

A sensação era de estranheza mas não de espanto. 

No outro dia ligou-me um dos antigos conhecidos e estivemos a passar em revista várias pessoas da altura em que de lá saí. E foi há tão pouco tempo que saí, há cerca de dois anos. Uns saíram para outras empresas, outros para outras funções fora dali, outros para a reforma. Muita gente nova tinha entrado. Dizia-me ele: 'Cruzo-me com desconhecidos e não sei se é gente de cá se é gente de fora. Há serviços em que não conheço quase ninguém'. Enquanto ele falava, eu pensava: 'Se ele que lá trabalha pensa isto, que diria eu se lá fosse...?'. 

Numa outra vez, estava a ter uma reunião remota com uma pessoa de lá e qualquer coisa no espaço me pareceu familiar. Perguntei-lhe: 'Então agora onde é o seu poiso?'. Ele rodou o computador para filmar em volta: 'Veja se reconhece... ' Reconheci. E ele confirmou: 'Estou no seu gabinete'. 

Ontem pensei que tinha que ligar para lá para esclarecer uma situação e fiquei a pensar: 'Com quem peço para falar? Todos os conhecia daquela área já lá não estão..'. Uma sensação estranha.

Talvez por isso, hoje, quando o despertador tocou, acordei de um sonho muito estranho. E tive dificuldade em desligar-me do sonho.

No sonho eu estava a despertar. Tinha acordado e não conhecia ninguém. Estava no meu anterior local de trabalho e a disposição dos espaços era nova e as pessoas eram outras. Olhando, aturdida, em volta, tinha ouvido: 'Esteve a dormir durante mais de um ano...'. E eu, incrédula, olhando em volta: 'A dormir? Como se pode dormir durante um ano? Não estaria em coma?'. Não acreditava. 'Alguém me alimentou?!'. E as pessoas, como se fosse natural: 'Levantávamo-la todos os dias, era alimentada, lavada'. E eu, assustada, temendo ter estado vulnerável, diminuída: 'E usava fraldas?'. Sorriram: 'Não. Tínhamos horas certas para a levar à casa de banho'. Eu não percebia nada do que estava a passar-se. 'Mas porque me mantiveram no escritório?' Depois, preocupada com medo de ter causado preocupação aos meus: 'E a minha família?'. E eles: 'Achámos que era aqui que fazia sentido estar. A sua família tem vindo visitá-la'. Eu tentava perceber: 'Mas eu estava de olhos abertos?'. Como se fosse uma coisa natural, explicavam-me: 'Sobretudo tem estado a dormir mas de vez em quando estava de olhos abertos'. Naquela que tinha sido antes a salinha das massagens e, em alturas covid, o gabinete de confinamento, estava agora uma espécie de quartinho. 'Estive aqui um ano?'. E eles: 'Mais de um ano?'. Toda a gente ali parecia conviver bem com uma pessoa que vivia ali naquela sala, no meio de um escritório, numa torre de vidro, há mais de um ano. Olhavam para mim com uma naturalidade que me parecia estranhíssima. 'Mas não deviam ter-me mandado para o hospital?'. E eles: 'Mas porquê? Estava bem'. E eu: 'Mas levavam-me às reuniões?'. E eles: 'Sim mas só às reuniões mais complicadas'. Eu não percebia nada. Aquilo não me agradava. Respondiam-me a tudo, pareciam não estar a esconder-me nada. Mas nada me parecia fazer sentido. Queria perceber. 'As pessoas da minha família conversavam comigo?'. E eles: 'Isso não sabemos mas se calhar falavam'.

Acordei e estava nisto. Sem perceber. Pensando que nada daquilo encaixava. Pensava: 'Mas estava a dormir ou estaria inconsciente?'. E só pensava que estava rodeada de desconhecidos. 

E, durante o dia, várias vezes pensei nisto. 

Ficou em mim a estranha sensação de lá ter ficado esquecida e de que, ao despertar, tinha constatado que tudo tinha mudado e que, estranhamente, os novos habitantes do espaço me tinham adoptado assim, como um animal de estimação que os donos tivessem abandonado, nem a dormir nem acordada, nem consciente nem inconsciente, nem útil nem inútil.

Se calhar é porque, daqui por algum tempo, depois do verão, vou ter que lá ir, já está combinado. E vai ser estranhíssimo. Vou sentir-me uma estranha. Se calhar por isso tive este sonho que deixou em mim este incómodo. 

Ontem, também, ao querer aceder ao blog, não consegui, tive que provar que não era um robot, qualquer coisa de estranho se tinha passado, mas não sei o quê. Ocorreu-me que um dia posso ficar sem acesso ao blog para o actualizar e que o Um Jeito Manso pode ficar a pairar no espaço como um blog esquecido, como aqueles blogs cujo autor morre e fica imutável, para sempre parado no tempo. Ou que o próprio blog despareça sem que eu saiba onde procurá-lo. Ou sem que saiba como avisar-vos. 

Ideias um pouco estranhas. Mas pode acontecer. E talvez por saber que pode acontecer e por ter medo que aconteça é que estou com esta estranheza em mim.


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Têxteis sagrados de Goa na companhia de Ute Lemper que interpreta Lili Marleen

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Desejo-vos um dia bom
Saúde. Serenidade. Paz.

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