sábado, maio 07, 2022

Maio. Dia sete.

 



Fomos andar à beira de água ao fim do dia. Estava calor e cheirava a maresia. Quando o disse o meu marido disse: Cheira é a ganza. E, de facto. Não sei que é isto mas agora, ao andarmos por ali, cheira que se farta. Não sei se liberalizou, se virou moda, se é por motivos terapêuticos. Se for, não sei a que é que faz bem, talvez à ansiedade. A malta está numa boa, a sentir as boas vibes do mar, a inalar uns ansiolíticos em estado gasoso. Digo eu.

Por volta das sete e muito da tarde, perto das oito, talvez mesmo oito, a praia estava cheia. Muita gente de outras paragens o que dá aquele ar eclético que me agrada. Línguas que reconheço, línguas que não. Gente a tocar, musiquinha com arzinho de mar e de sunset. Gente de skate, gente de bicicleta, gente a correr, gente a coxear. Eu não, que o brufen de ontem à noite me deixou fina. Sempre gostei de ser turista acidental no meio de outros turistas acidentais. 

E muita gente a tomar banho. Não sei se a água estava boa, se há muita gente corajosa. Devia ter levado a máquina para fotografar. Mas não levei. Quando saí de casa estava exaurida, com vontade de me pôr a milhas. 

Há muita gente a passear cães e é engraçado que a nossa fera se marimba para todos. Os pequeninos passam-se da vida com ele. Ladram-lhe, querem-se-lhe atirar. Hoje uma lulu peluda e bem penteada, branquinha, fez-lhe um cerco e, do nada, tentou morder-lhe. Assustei-me e até soltei um pequeno grito. O meu marido quase o içou, para o salvar da garina afobada. E ele, estranhamente, nem aí. Continuou a andar na maior indiferença. 

No outro dia, na praia, um outro pôs-se a brincar, ele a brincar, os dois de roda um do outro, a cheirarem-se, a correr, a saltar. Amigos. Mas, de repente, começámos a perceber que o urso felpudo estava como que a querer colocar-se numa posição algo estranha. Assustámo-nos. Os miúdos apreensivos. Eu a não querer que aquilo avançasse. Todos a pensar que o big bear, na volta, seria gay, como que a querer saltar para a espinha do outro (por assim dizer). Mas não. O meu marido limitou-se a lamentar a nossa ignorância, disse que não tinha a ver com sexo, que era a forma dele demonstrar ao outro a sua posição dominante.

Pois não sei. 

Mas, na verdade, também estou naquela: quero é que ele seja feliz. E, de resto, daqui por uns meses, se calhar, fazemos o que a veterinária aconselhou: a castrar a fera. Não se depois fica a ladrar fininho ou se a coisa não afecta. Mas também não interessa.

Bem. Adiante.

Dizia que o que sei é que não se enerva com os outros cães. 

O que o enerva verdadeiramente é quando o 'seu' rebanho dispersa. Por exemplo, se eu me afasto para entrar numa loja ele fica possuído, dá saltos no ar, quase piruetas, puxa, quer ir atrás, quer soltar-se da trela, fica num estado de nervos. E, quando me reaproximo, põe-se de pé, abraça-me, emocionado pelo reencontro. E isto acontece quando os miúdos se afastam, quando qualquer um de nós se afasta. O seu instinto de pastor fica bem patente quando alguma ovelha parece tresmalhar-se.

Resumindo.

Voltámos para casa tarde, oito e tal, se calhar quase nove. Já não uso relógio, não sei. Nada de mal pois o jantar estava feito: restos. Souberam bem, souberam a sexta-feira, a não ter que fazer o jantar. 

A semana foi complexa, o trabalho com algumas coisas ensarilhadas, o dia embrulhado desde muito cedo até ao fim do dia. E tinha eu pensado que a semana ia ser tranquila. Fiz mal. Não se deve pensar isso. Devemos deixar rolar.

Felizmente já estamos no sábado. Um fim de semana a começar e calorzinho e canto de passarinhos e a primavera toda atrevida a dar-se ares de verão. Coisa boa.

E é quase dia 9 e vamos ver o que aí vem. Muito preocupada com tudo. Não é só a brutalidade. É também a hipocrisia. O desrespeito. 

Mas não vou falar disso. 

Tenho que descobrir um mantra para mim. Como poderá ser? Como é um mantra? Palavras de agradecimento e de alegria? Palavras que transportam flores no seu regaço? Não sei. Não sei mesmo.

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As flores foram fotografadas pelo talentoso Cho Gi-Seok e fazem-se acompanhar por Melody Gardot e Philippe Powell que interpretam This Foolish Heart Could Love You

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Um bom sábado
Peace and love

4 comentários:

José Duarte disse...


Coitadinha da fera peluda, UJM! A sua hipotética mas arrepiante castração daria fatalmente origem a alterações brutais, não apenas físicas mas sobretudo comportamentais. Ele passaria a ser "outro" e teriam dificuldade em reconhecer na nova e acabrunhada criatura aquele ser que agora tanto admiram e amam. Transformar-se-ia numa saudade e, com elevada probabilidade, num quotidiano remorso.

Eu nunca fiz aos meus cães, entre os quais um quase-gémeo da sua fera, uma tal barbaridade, e nunca me arrependi. Mas conheci gente que o fez e pude testemunhar o triste quadro que daí resultou, com o consequente - mas irreversivelmente tardio - arrependimento de quem em má hora se inclinou para a decisão fatal...

Uma das estimáveis riquezas da fera peluda é a sua maravilhosa, ainda que irrequieta, personalidade. Tenho a certeza de que ele, se pudesse opinar, se oporia a que lha suprimissem de forma tão atroz.

Pelo que nos vai contando, concluo, definitivamente, que tão garboso e afirmativo companheiro não nasceu para eunuco. E intercedo por ele! Desejo-lhe um bom resto de domingo e uma excelente semana. Com a fera peluda feliz e sempre "inteirinha"...

Um Jeito Manso disse...

Olá José Duarte

Sabe que eu sou completamente avessa a mutilações de qualquer espécie. Mas a veterinária deu como facto adquirido que deveríamos fazer a castração para evitar doenças e que deveria ser aos 6 meses. Depois, uma criadora de cães disse-nos que não deveríamos fazê-lo antes de ter 1 ano para não prejudicar o desenvolvimento. Falei nisso à veterinária e ela disse que sim, poderia ser.

Mas tenho sempre esta dúvida.

Falámos à monitora da escola onde fomos 10 vezes para ver como lidar um pouco melhor com a teimosia e hiperactividade dele. Ela disse que sim, que era melhor, que ficará mais calmo, menos curioso. Mas, ao ouvir os argumentos dela, eu pensava que não queria que ele fosse menos curioso nem muito 'betinho'. Mas, claro, se isso evitar que tenha tumores e viva mais então há que considerar.

Contudo, ao ler as suas palavras (que li também ao meu marido), ficámos mesmo na dúvida. Claro que queremos que ele mantenha a sua fantástica personalidade que nos encanta. Jamais me desculparia se ele ficasse outro. Mas será que isso das doenças não é verdade? Porque haveriam os veterinários de querer castrar os animais...? O que lhe parece?

Já somos temos 3 meses para decidirmos...

Muito obrigada pelos seus sábios conselhos que tanto nos têm ajudado.

Uma boa semana, José Duarte.

José Duarte disse...


Olá, UJM,

Não pretendo, nem de perto nem de longe, questionar a competência dos profissionais que vos aconselham, até porque a minha área de formação fica a milhas das deles. O que digo tem sobretudo a ver com o meu respeito e afeição pelos animais (todos os animais, não só cães), a longuíssima vivência que tenho tido com eles e aquilo que pude observar no decurso desse convívio.

Há aqui, com certeza, uma questão de sensibilidade pessoal e cada dono de animais tem a sua. Eu, por exemplo, fiquei horrorizado com o que vi suceder, após a castração, a cães pertencentes a amigos meus – uma mudança radical e deprimente de personalidade e comportamento, ou seja, a tal transformação numa “outra” criatura.

Nalguns casos testemunhei a decepção e o arrependimento das pessoas, o que só reforçou a minha determinação de jamais fazer tal coisa a nenhum dos meus fiéis companheiros (cães e gatos).

Temo que os profissionais possuam uma visão demasiado técnica ou “mecanicista” acerca do assunto. A sensibilidade dos donos dos animais não é tida em grande conta (até porque muitos não se importam de ficar com um cão “robotizado”, gordo e molengão).

No fundo, jogam com probabilidades – uma castração reduz (mas não elimina) a probabilidade de certo tipo de tumores (sobretudo testiculares), o que valeria também para os seres humanos… Mas um bom profissional tem o dever de esclarecer os clientes sobre os inconvenientes, ou contras, da operação.

Achei arrepiantes, mas elucidativas, as palavras da monitora (provavelmente bem intencionada): "ficará mais calmo, menos curioso". Pobre urso peludo! Lembrei-me logo das infames lobotomias que se faziam há uns anos aos seres humanos, para que acalmassem (como sucedeu à infeliz Rosemary Kennedy)...

Eu tive sorte, nenhum dos meus cães sofreu de qualquer tumor. O quase-gémeo da vossa fera partiu desta vida, de físico e personalidade intactos, por volta dos treze anos – era já um ancião… Mas não posso garantir – ninguém pode - que o urso felpudo tenha sorte idêntica. Nem o contrário.

Abundam na internet os artigos sobre os prós e os contras da castração (mando-lhe um por e-mail). Para mim, o maior contra é exactamente aquele a que menos ênfase se costuma dar: a alteração da personalidade e do comportamento do animal. Mas será sempre uma decisão muitíssimo pessoal.
Desejo-lhe uma semana feliz.

Um Jeito Manso disse...

Olá José Duarte,

Estive a ler o que encontrei (e o artigo que me enviou, claro) e já resolvemos que, quando chegar a altura, vamos falar com a veterinária e dizer que a nossa decisão está a pender para a não castração.

É verdade: é uma violência. E o que li sobre a menor probabilidade de ter tumores não é decisiva pois não os terá num sítio mas poderá ter noutro. E se aí estamos no campo das probabilidades, já dos efeitos no seu temperamento/comportamento serão certos.

Muito obrigada por me ter alertado e informado. Não sabe como lhe agradeço a preciosa ajuda.

Dias felizes.