sábado, fevereiro 19, 2022

Escrever sem filtros

 

Não vou falar muito do meu dia. Deve ser uma seca para quem me lê, é sempre mais do mesmo. Por isso, limitar-me-ei a dizer muito pouca coisa. 

Tinha uma reunião manhã cedo e, de véspera, tinha-me queixado disso. Esta mania de marcarem reuniões de madrugada. Como não quero dizer que me deito às quinhentas, não tenho pretexto para dizer que à hora a que gostam de fazer reuniões estou eu ainda na melhor parte dos meus sonhos.

De facto, estava ainda a dormir, a sonhar que estava numa casa com uma parede azul-verde-turquesa-esmeralda e que estava a escolher objectos curiosos para a decorar. Lembro-me de uma caixa muito bonita com uma tampa de vidro e eu estava a colocar colares lá dentro e ia pendurar a caixa como objecto decorativo, ao alto, a tampa de vidro a parecer uma portinha que deixava ver a colorida pedraria dos colares. O tecto era branco e tinha a meio um florão estucado com um candelabro de Murano pendurado. Nisto, ouvi o meu marido a perguntar-me: 'Mas não tens uma reunião agora?' Levantei-me de um salto. Ele até disse: 'Calma! Não precisas de te levantar assim...' Pensei que me tinha esquecido de pôr o despertador. Afinal não. Devia já estar tão a dormir que o pus para uma hora depois. Por isso, tive cerca de quinze minutos para me preparar para me apresentar fresca, arranjada e desejavelmente assertiva na reunião. 

Portanto, começou assim o meu dia... e seguiu sempre a abrir.

Mas a seguir à hora de almoço peguei no livro e fui lá para fora, para o sol. Só que não havia sol. E o dog em vez de se deitar a dormir ao sol, talvez pela ausência do mesmo, resolveu pôr-se de pé a puxar por mim, a pôr a pata peluda em cima do livro, a esburacar-me as mangas. Fui buscar-lhe um ossinho a ver se se entretinha a roê-lo mas, qual quê, andou a atirá-lo, a saltar-lhe em cima, a escondê-lo e, pelo meio, punha-se de pé para me puxar o cabelo, para me descalçar as meias ou simplesmente para me moer a paciência. O meu marido critica-me: 'Não te impões... Bate-lhe'. Então, de vez em quando, dou-lhe uma tapa. Ele salta e volta ao mesmo ainda mais animado, até parece que a rir. O meu marido diz: 'Isso é que é bater? Para ele isso é uma brincadeira.'. Mas claro que não sou capaz de lhe bater com mais força. A coisa geralmente acalma-se quando o meu marido lhe dá um daqueles seus violentos gritos. Aí abana-se todo, como se para se sacudir (eu acho que é para fazer reset), e vai fazer outra coisa. Mas, muitas vezes, apenas faz um intervalo pois rapidamente volta ao mesmo. Até se cansar.

Mas, no meio, consegui ler mais um bom bocado do livro O ano do pensamento mágico. Não tarda estou a acabá-lo. É um livro muito tocante, muito sincero. A fragilidade de Joan, viúva, exposta de uma forma muito inocente, é verdadeiramente tocante. 

Já o falei: há no que ela diz muito do que a mim também me faz muita impressão -- a transição de um estado para o outro é coisa de um instante, de um acaso. Está-se bem e, no instante seguinte, já não se está. Ela interroga-se: e se, naquele dia, em vez daquilo, eu tivesse feito outra coisa? Joan percorre, de memória, todos os passos dados em conjunto, todas as palavras trocadas, tenta ver no computador dele as últimas palavras que escreveu. Tenta encontrar vestígios do que estava para vir, receia ter estado desatenta perante sinais que eram óbvios, tenta perceber se ele antevia, de alguma forma, que a sua vida estava prestes a extinguir-se. Percebo-a muito bem. Joan sente que, se de alguma forma conseguir desvendar o mistério, talvez consiga entrar melhor no mundo vazio, sem John. Tenta encontrar alguma racionalidade num mundo que, sem ele, lhe parece irracional. E, de uma forma muito íntima, muito ilógica, Joan deseja que o que aconteceu possa ser revertido. Um milagre da ciência ou qualquer outra coisa, não importa qual.

Enquanto tentava recuperar-se da perda do marido, a filha estava gravemente doente. O que Joan sofreu, o desgaste físico e psicológico a que esteve sujeita foram brutais. Perdeu imenso peso, ficou uma frágil pluma. 

Mas, ao contrário do que poderia pensar-se, não é um livro de autocomiseração. Escrito de forma seca, despojada, não há ali uma só lamechice. É uma escrita sem filtros. Quase parece uma escrita sem edição. As mãos escavando a mente e a alma.

Encontro também ali uma ideia que me é familiar. No meio da maior desgraça, eu dou por mim a tentar encontrar o lado positivo da coisa. Não há uma única situação em que isso não aconteça. Muitas vezes, interiormente condeno-me por dar por mim a tentar descobrir o lado positivo de uma coisa que é má de uma ponta a outra. Mas é involuntário. Apesar de ser uma coisa que nasce espontaneamente em qualquer ocasião, a verdade é que me ajuda a suportar os maus momentos e, ao mesmo tempo, ajuda-me a tentar ajudar os que estão inconsoláveis pelo que aconteceu.

Mas isto, a leitura, foi à hora de almoço.

A tarde foi bas (= business as usual). 

Mas conseguimos acabá-la um pouco mais cedo. Fomos caminhar e ainda era de dia. Ver os dias a crescerem traz-me alegria. Antes, ainda fui fotografar as magnólias que, prenunciando a primavera, já estão em flor. É uma árvore de um fantástico simbolismo: dá flor quando está despida. E se são belas e simples as suas flores. Emociono-me com as flores deste jardim que herdei, que uma mulher, antes de mim, imaginou, plantou, cuidou. Sei como é deixar para trás uma casa mas não imagino o que seja deixar para trás um jardim. Espero nunca ter que deixar.

Depois fomos ao supermercado. Depois à pet shop e dali ao restaurante buscar o jantar. Felizmente havia dinheiro nas duas carteiras pois o multibanco estava em baixo. 

Jantámos tarde, claro, mas, embora para aqui esteja como sempre estou (com sono), acho que foi um dia bom e, como estamos a entrar no fim-de-semana, sinto-me como se estivesse a entrar em férias. Contento-me com pouco e sinto-me agradecida com tudo. 

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Joan Didion's nephew reflects on her legacy and inspirations: 'Life was her material'


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Fotografias de Zara Carpenter na companhia de Emőke Baráth, Philippe Jaroussky, Artaserse – Handel: Lotario, HWV 26: "Scherza in mar la navicella"

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Desejo-vos um sábado agradável
Paz de espírito. Beleza. Afecto. Alegria.

2 comentários:

Anónimo disse...

Como disse JC para Pilatos :

Tu o dizes !

Não vou falar muito do meu dia. Deve ser uma seca para quem me lê, é sempre mais do mesmo. Por isso, limitar-me-ei a dizer muito pouca coisa.

Um Jeito Manso disse...

Carisssimo Anónimo/a,

Se não estou em erro, o post tem 1044 palavras. Dessas, 26% falam do que foi o dia, 15% descrevem um sonho e 59% falam de um livro.

Ou seja, a maior parte do texto, mais concretamente 613 palavras, tem a ver com um livro a que me tem apetecido dar realce.

Uma boa noite para si.