Tenho uma memória muito antiga da que foi a primeira casa em que vivi. Lembro-me de como era mas lembro-me sobretudo da minha mãe querer que a casa de banho estivesse pintada em verde-água. Lembro-me dela misturar mais branco na caixa de tinta para ficar uma cor francamente clara. Diria que a pintou ela sozinha, comigo a acompanhar. Se calhar foi nas férias dela pois tenho ideia que o meu pai chegou a casa ao fim da tarde, já a obra estava concluída. Fiquei com a ideia de que ela estava toda contente com essa melhoria lá em casa. Nessa casa, à noite, cá fora, havia pirilampos e eu andava, às escuras, com os meus pais, a tentar apanhar algum. Se conseguíamos, colocávamo-lo dentro de um copo de vidro virado ao contrário. De manhã, em vez do pirilampo estava lá uma moeda que eu guardava no mealheiro.
Da outra casa, a casa onde a minha mãe ainda mora, uma casa construída para eles, não me recordo das obras. Provavelmente ficava em casa dos meus avós enquanto eles lá iam ver o andamento dos trabalhos. Desta casa sempre me ficou a pena de não terem arranjado o sótão, tornando-o uma sala em open space. Sempre acharam que não valia a pena e sempre ficou uma zona em que o meu pai guardava ferramentas ou outras coisas ou ia para lá fazer arranjos ou, depois de se reformar, construir peças em madeira. Por isso, também nunca puseram um varandim em volta da entrada e eu, como sempre tive vertigens, quase não ia lá pois subir ainda subia mas, quando lá estava e olhava para baixo, para as escadas, sem ter um varandim para me apoiar, sentia uma terrível ansiedade, aquilo que quase se sente como uma incompreensível atracção para o abismo. Nem nunca quis que os meus filhos lá fossem com medo que caíssem.
Talvez por isso -- porque nunca percebi o desinteresse dos meus pais por aquele espaço que poderia ter uma decoração interessante e no qual poderiam pôr uma janela de onde se poderia ter a melhor vista da casa -- nunca achei esta casa extraordinária excepto pela vista que essa, sim, o era. Era e ainda é mas, na altura, ainda era melhor, sem prédios a tirarem a vista do rio.
Como desde sempre tive um gosto imenso por casas, lembro-me bem de algumas que, por essas alturas, me deixavam agradavelmente surpreendida. Chegava a casa e contava à minha mãe. Vinha encantada, não me cansava de as descrever.
Uma dessas era a casa de uma colega de liceu. Era o último andar de um prédio muito alto e muito grande. O prédio era dos melhores da cidade e fazia uma meia lua. Em cada andar havia três apartamentos, o direito, o esquerdo e o frente, cada um bastante grande. A casa dela ocupava todo o andar. Era enorme. E tinha um grande terraço, com solário e tinha uma zona com uma enorme claraboia. A zona dos quartos era de um lado, a zona das salas e escritórios era do outro e, a meio, havia a zona da cozinha, copa, lavandaria, despensa e mais não sei o quê. Na zona da cozinha havia um painel de campainhas. Cada divisão tinha uma campainha. As empregadas recebiam os avisos, viam qual a divisão que estava a chamar e iam ver o que era. Andavam fardadas.
Ela tinha um irmão. Quando eu lá ia estava sempre muita gente lá em casa mas tudo maltinha miúda: éramos nós, as amigas dela, era o irmão e os amigos. Pouco víamos a mãe dela. Tenho a ideia que sempre a vi triste. Tinha perdido um filho uns anos antes e parece que nunca tinha conseguido superar o desgosto. O pai ainda se via menos. Era um homem grande, forte e que era simpático, embora distante. A ideia que eu tinha era que ela e o irmão viviam um com o outro e que eram as empregadas que, na realidade, geriam integralmente a casa. A dimensão das divisões, a decoração requintada e a liberdade que ali se vivia eram, para mim, o máximo. Ao passo que a minha mãe e o meu pai queriam saber tudo o que eu fazia e impediam-me de fazer muitas coisas, ali parecia não haver mãe ou pai a controlar o que quer que fosse. Lembro-me do equilibrismo que alguns dos miúdos faziam em cima do rebordo da claraboia ou da forma como trepavam às paredes e até me arrepio com o risco que tenho ideia que se corria.
Ela tinha uma prima, também nossa colega e amiga que vivia numa casa de dimensão normal mas, a meus olhos, também especial. A mãe dela era muito bonita e moderna. Usava uma grande franja, vestia-se de uma maneira muito pouco usual. Ia muito a Londres fazer compras. Fumava muito e parecia que tinha a sua própria agenda, que não incluía os filhos. A casa tinha um pátio interior que eu achava uma coisa exótica. Nunca antes tinha visto uma casa com um pátio interior. E havia uma escada na sala. Essa sala tinha estantes à volta, incluindo debaixo das escadas. Isso parecia-me também uma extravagância. Foi lá que vi a primeira vez uma enciclopédia completa, muitos livros elegantemente encadernados. Quando lá estávamos não nos cruzávamos muito com a mãe e, se calhava ela lá estar, pouco nos ligava, estava a ler, a ouvir música, a fumar, ao telefone. Ou ia sair. Ou chegava a casa, olhando com indiferença para a confusão que lá causávamos. Também parecia que a casa estava entregue à empregada.
Havia também a casa de uma outra colega e amiga. Era uma casa senhorial no meio de uma quinta perto da escola onde a minha mãe dava aulas. Eram seis ou sete filhos. Nunca vi o pai. A mãe também pouco parava em casa. De vez em quando chegava um grande carro e o motorista abria-lhe a porta e ela chegava a casa sem sequer olhar para a miudagem. Havia um laranjal e nós íamos apanhar laranjas para comer logo ali. Lembro-me muito bem dessa casa. Tinha daquelas janelas altas que tinham um banco de pedra de cada lado. E as janelas tinham portadas de madeira. Achava isso muito bonito. Gostava de me sentar nesses bancos e imaginava que, se morasse lá, gostaria de me sentar ali a ler. Mas, quando lá estava, ninguém parava sossegado nem ninguém ligava aos banquinhos pelo que nunca consegui satisfazer esse meu gosto.
Já era eu um pouco mais crescida, uma nova amiga entrou no grupo de amigos inseparáveis. Era muito bem comportada e silenciosa. Tinha vários irmãos e vários primos. Enquanto os primos eram muito irrequietos e brincalhões, ela e os irmãos contrastavam pelo bom comportamento. É médica tal como uma das irmãs e deve continuar a ser calada, bem comportada. A mãe quase parecia avó dela mas também ela era a mais nova, tinha irmãs bem mais velhas. A casa era uma moradia geminada num bairro residencial. A porta estava ao nível do passeio mas nas traseiras havia um grande quintal. Quando se abria a porta da frente, subia-se um lance de escadas e havia um comprido corredor com divisões dos dois lados e, ao lado, descia-se um outro lance que dava para a cave. Nessa cave trabalhava em permanência a costureira, coisa que eu achava insólita pois era a única costureira privativa que eu conhecia. Era frequente ouvir-se a máquina de costura.
Uma das particularidades desta família é que tinham uma casa de campo que, do que me lembro, deveria estar a uns dez ou quinze quilómetros da outra casa. No entanto, na altura eu não achava bizarro ter-se uma casa de campo tão perto da casa da cidade. Ao lado da casa dela estava a casa dos primos. No verão iam todos viver para lá. E todo o grupo de amigos também lá estava caído dia após dia. Íamos a pé para lá e tudo aquilo era uma aventura. Na maior parte dos dias, íamos de manhã para a praia e, depois de almoço, para lá. Na altura, eu estava muito apaixonada por um rapaz da minha idade e estarmos os dois lá era, para mim, a maior das aventuras. Nessa casa, na parte da frente da casa, no jardim, havia um coreto com bancos de pedra e uma mesa de ferro forjado ao meio. Foi daí que vi o meu amor fazer cavalinhos e piões de bicicleta, derrapando na areia, caindo e partindo um dente da frente. Nesse dia ele ficou com sangue na boca, com os lábios inchados. Mas, quando passou, ficou o dente partido que lhe dava imenso charme. Lembro-me de termos ido para a casa de banho tratar dele, só miudagem. E, também aqui, não tenho ideia de ver adultos. Só as irmãs mais velhas que nos queriam era à distância. Nessa casa pouco entrávamos, estávamos quase sempre no jardim, em especial no coreto. Ali perto havia uma extensão de campo por onde saíamos a passeio, à descoberta de um convento abandonado onde numa das vezes descobri, escrito ainda de fresco e a todo o tamanho da parede: AMO-TE e, por baixo, o meu nome, também em maiúsculas. Tempos de grande amor.
E vou ficar por aqui pois de todas as casas que, na minha juventude, conheci estas foram das que melhor me recordo. E o texto já vai longo.
[Mas, pensando em tudo isto, tenho também que reconhecer que também eu andava à solta. Desde os meus dez, onze anos que me habituei a ir sozinha para casa dos meus amigos. No verão devia chegar a casa para jantar -- e era tudo normal. E sem telemóveis...]
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