segunda-feira, julho 26, 2021

Otelo

 



Algumas pessoas não cabem dentro da esquadria normal. Talvez seja porque não são tridimensionais como as que se enquadram sem dificuldade.

Mesmo sem querer, todos nós traçamos as linhas em que a movimentação dos outros nos parece razoável, linhas que, mesmo sem darmos por isso, se instalam como linhas vermelhas: linhas do bom comportamento, da religião, da ética, do respeito pelos outros. Somos mais ou menos tolerantes... mas deste que o outro não pise nunca esses riscos.

Tenho também ideia que só quem tem a coragem ou a inconsciência de sair da esquadria é que consegue furar a malha do status quo para fazer a disrupção que, de vez em quando, é precisa.

Podemos querer que, quando o momento o pede, consigam destacar-se da mediania e sejam mais corajosos, visionários, criativos e audazes do que todos nós -- e, ao mesmo tempo, fora disso, sejam bem comportados e iguais a todos nós. Contudo, penso que isso é uma equação impossível.

Talvez por isso, de quase todos os que ficaram para a história se conhecem excessos, desvios, excentricidades, maus passos.

A ideia que tenho é que Otelo é bem exemplo disso: um daqueles seres que não encaixa bem em nada e que, quando foi preciso, se chegou à frente e avançou de peito feito.

Na escola teve faltas de mau comportamento, foi suspenso. Sempre foi extrovertido, truculento, utópico. O palco e as câmaras atraíam-no. Não temia o mediatismo nem o confronto. 

Não tinha ainda quarenta quando se deu o 25. Amigo da coboiada, certamente sempre pronto para uma cena, em especial se prometesse conspiração -- mesa virada, pratos partidos e 'ir aos cornos' a quem estivesse a pedi-las -- preparar o 25 deve ter sido uma coisa épica: adrenalina e testosterona em dose dupla, provavelmente tudo condimentado com palavrão e gargalhada, e bem regado com umas bjecas bem fresquinhas.

No 25 a coisa deu-se e deu-se com uma grande pinta: a missão não poderia ter sido melhor cumprida. Vimo-nos livres do sarro de antanho, despimos o cinzentismo e o bafio de décadas, sacudimos o pó salazarista e marcelista que não deixava a malta respirar, a liberdade veio para a rua e a democracia começou a dar os seus passos.

Claro que a seguir Otelo continuou a fazer das suas. Deslumbrou-se, encandeou-se, pisou o risco, desiludiu-se, quis reencontrar o espírito inocente dos ideais revolucionários, de vez em quando disse o que não devia, de vez em quando fez o que não devia. Anos depois de ter ajudado a conseguir a libertação dos presos políticos, os seus excessos levaram-no, a ele mesmo, aos calabouços.

Não se consegue amestrar uma pessoa assim. A cada momento mostra que desconhece esquadrias. Ou, se as conhece, está-se nas tintas para elas pois tem muitas outras coisas em que pensar.

Antes, calhava muitas vezes estar a conduzir, do almoço para o escritório, enquanto na TSF passava a playlist de pessoas conhecidas. De todas as que ouvi, as pessoas introduziam o tema explicando porque é que ele as tinha tocado ou porque é que o cantor lhes era especial. Otelo foi diferente: Otelo cantava as canções, a sua voz juntava-se à de Sinatra ou a de quem quer que fosse, misturava-se com a música. O seu à vontade, a sua joie de vivre foram, como sempre, patentes. Facilmente o imaginávamos a dançar, a cantar 'a casa da mariquinhas' nos seus encontros de amigos.

Destemperado, desalinhado, com uma energia e uma alegria sem peias, na vida amorosa também não se aguentou nos eixos. Tinha duas mulheres que, por o compreenderem e amarem, aceitaram que repartisse a sua vida entre duas casas. E ele assumia isso sem pejo ou pudor. 

Otelo foi um homem que não coube em esquadrias -- e a quem muito devemos. Quanto ao resto, temos que encarar como efeitos colaterais que, por muito que nos custe ou que custe a alguns, devem ser relativizados. 

Quando ouvi que tinha morrido senti um abalo interior, como se Otelo, o eterno jovem, estivesse a atirar-nos à cara que tudo é perecível nesta vida e como se, com a sua morte, o 25 de Abril de 1974 passasse agora a ser coisa do passado.

Mas é assim que as coisas são... 

... e a vida continua. 
Desejavelmente sempre com um cheirinho de alecrim.

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O primeiro cravo foi pintado por Leora Baranes e os últimos por Lori Twiggs. Dos graffitis com os cravos de Abril não sei quem são os autores

O Chico canta o Tanto Mar

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira

E viva a liberdade

9 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado Otelo!

Maria Santana disse...

Obrigada Otelo!

Estevão disse...

Eu também agradeço a Otelo.
E acho o texto uma súmula magnífica e fiel.
Uma boa semana.

Anónimo disse...

UMJ

Parabéns pelo seu texto, foi do mais alinhado que se possa escrever ( e sentir )
.Parabéns

Smiley Lion disse...

Excelente texto cara UJM.

Vou lembrar-me por muito tempo desta frase: "Otelo foi um homem que não coube em esquadrias -- e a quem muito devemos" - Obrigado Otelo (digo também eu)!!

Obrigado UJM

Anónimo disse...

Olá UJM
O melhor texto que li sobre Otelo.
Junto-me aos demais comentários: Obrigada Otelo!
Obrigada, UJM, por nos transmitir as suas opiniões sempre inteligentes, corajosas e sinceras.
Abraço
Filo

Anónimo disse...

Não me parece que Otelo fosse uma personagem particularmente poética, sequer um idealista, muito menos um defensor da liberdade e da democracia, mas também fiquei triste com a sua morte. Foi o homem no posto de comando no dia da libertação e isso lhe devemos. Sei que não era um dos FP-25. Esses eram acima de tudo intelectuais obstinados e desprezavam o Otelo por ser um bronco.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Um texto à la UJM: magistral.

Um belo dia.

António Ladrilhador disse...


Gostei do seu texto, e sem dúvida que "se chegou à frente e avançou de peito feito". Já as excentricidades podem ter algo mais que se lhes diga.
Convido à leitura de uma pequena reflexão que me esforcei por escrever objetiva e isenta e que, se algum valor lhe encontrar, poderá comentar em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/07/otelo-o-espinho-que-nem-morte-arrancou.html.