sexta-feira, julho 02, 2021

Este desconhecimento do que nos habita.
Desconhecimento do que somos, melhor dizendo.

 


Dia com muita coisa dentro. Ao fim da tarde fiquei a saber um pouco melhor como sou por dentro. O médico levantou-se, foi buscar um papel e um lápis. Fez desenhos, explicou-me. Tranquilizou-me. Fiz, logo lá, novo exame. Prescreveu-me um outro que farei em breve. Antes já tinha visto imagens, a cores, daquilo de que, em condições normais, nem me lembro que existe dentro de mim. Melhor: daquilo de que sou feita. Somos não apenas as ideias que temos ou as emoções ou sentimentos que sentimos mas, também, um conjunto de órgãos que, quais máquinas, funcionam de forma autónoma ou através de impulsos que recebem de outros. Somos uma instalação com vários equipamentos dentro, equipamentos feitos de máquinas e máquinas feitas de peças. Somos uma instalação industrial que funciona com as suas utilities: canalizações, instalações eléctricas. Instalações que processam matérias primas e as transformam. Uma fábrica que trabalha por si e da qual desconhecemos o manual de instruções.

Queremos conhecer o universo mas desconhecemo-nos. Podemos conhecer muitos livros, muitas palavras, muitas músicas, muitos filmes, muitas plantas, muitas rochas, muitas constelações, muitos teoremas. Mas se nos perguntarem o que, a esta hora, está a acontecer dentro de nós, não saberemos dizer senão generalidades.

Por exemplo, não sei se tenho uma artéria com sangue a circular por dentro ou por fora do coração, se os impulsos eléctricos que o percorrem são os que devem, se a densidade dos meus ossos é a que deve ou o nível de ácido fólico é o que é suposto. E como saber se algumas das minhas circunstâncias estão a ter impactos que ignoro? Como sabê-lo? Só se andar a enfiar-me em máquinas investigadoras a toda a hora ou a deixar que me extraiam sangue em contínuo. Impossível. 

Vivemos na ignorância do que somos, essa é que é essa. Se vir imagens de mim por dentro, na maior parte dos casos não saberei que me pertencem ou, sequer, a que se referem.

No outro dia, por whatsapp recebi imagens fantásticas, intensamente coloridas, e, em cima, o meu nome. Era pois uma parte de mim. Naquele momento, alguém estava a analisar o que via de mim, por dentro -- e essas imagens foram-me enviadas. Se não estivesse lá o meu nome, poderia ser a imagem de parte de um qualquer outro animal. 

Olhei, admirada. É então assim que sou por dentro ou aquilo seria uma imagem filtrada, com cores saturadas, coisa digna de instagram? E estava a funcionar normalmente ou nada bem? Por muito que tentasse perceber, não fui capaz de fazer a mínima ideia.

Ao fazer-me hoje um exame, quem mo fazia olhou para mim e perguntou-me: 'sente-se bem?'. 

Ultimamente fazem-me muito esta pergunta. Respondi o que sempre tenho respondido:' sim. normal'. Um olhar perscrutante: 'Sim?'. E eu: 'Sim'. Mas, às tantas, fico na dúvida se 'normal' deve ser sinónimo de 'bem'. Ao voltar ao gabinete médico, de novo a pergunta: 'Como se sente?'. E eu: 'Bem'. E ele, sorrindo, 'Ainda bem'. E eu: 'Mas seria suposto não me sentir bem?'. E ele: 'Porquê?'. E eu: 'É que, ao longo de tudo isto, mesmo no dia em que isto aconteceu, mesmo na noite e na manhã que passei no hospital, sempre me senti bem. Normal.' E ele, sorrindo: 'Ainda bem'

Às tantas, quando me descrevia o que se passa comigo, ele disse: 'É normal'. Depois corrigiu: 'Bem, normal não se pode dizer que seja'. Mais adiante disse: 'Pode ser raro acontecer... mas acontece...'

Ao sair, esforcei-me por transmitir ao meu marido, aos meus filhos, à minha mãe o que tinha 'aprendido' mas não me foi fácil. Não percebi tudo. Já aqui estou farta de googlar para ver se consigo, eu, por mim, montar o puzzle. Mas não consigo. E, às tantas, simplesmente fartei-me. Não tenho pachorra.

O meu marido, em alta voz no carro com a minha filha, dizia: 'O que se conclui é que vai ter que mudar, nunca liga a nada, vai ter que ligar'. A minha filha dá-lhe razão, insiste, pergunta-me se já assimilei. Não me agrada muito este registo de todos eles. Não gosto de me sentir vigiada, controlada, retraída, condicionada. Espero que o tema e preocupações a meu propósito saiam do radar deles.

O meu filho fez-me muitas perguntas, é pior que eu, quer perceber a fundo. Já investigou, já leu artigos, já percebe daquilo a potes. Mas, enfim, não é a especialidade dele, quer mais inputs. Mas faltam-me conhecimentos. 

Depois de ouvir tudo, a minha mãe conclui: 'Foi a porcaria da vacina'. O médico não descartou isso mas não pode dizer que tenha sido, diz que podem ter existido outras causas, diz que, para ser claro que fosse da vacina, deveriam existir alguns outros sintomas que não encontrou.

Portanto, não quero saber. Disto, daquilo ou do outro ou, provavelmente, sobretudo porque sim -- porque o meu corpo é assim e, naquelas circunstâncias, portou-se daquela forma -- a verdade é que, o que foi, já causou estragos e vou ter que viver com eles. Mas também não vou ficar prisioneira disso. Era o que me faltava.

Bola para a frente.

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Fotografias de Richard Mosse pertencentes à série Displaced enquanto Haevn interpreta We Are

Nada terá a ver com o que escrevi mas, se tudo estivesse a fazer pendant, ainda isto seria mais maçador

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Uma boa sexta-feira

6 comentários:

Alice Alfazema disse...

Bom dia, UJM. Vim lhe deixar um Abraço Gigante. Beijinhos

E algo para ouvir:https://youtu.be/Occ3qQD-9tc

aamgvieira disse...

Desejo que tudo corra pelo melhor para si.

A. Vieira

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Riqueza,
É isso mesmo, bola para a frente e meter muitos golos.

Um rico serão!

Um Jeito Manso disse...

Olá Alice rodeada de Alfazema,

Muito lhe agradeço o carinho que transparece nas suas palavras. E obrigada também pela música dos lobos, música e sons da natureza que tanto me cativa.

Dias felizes para si, Alice!

Um Jeito Manso disse...

Olá aamgvieira,

Muito obrigada pelos seus votos. Também espero que toda esta fase algo perturbada e não destituída de alguma inquietação se afaste para bem longe de mim.

Felicidades para si também.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Há que dar a volta aos desconfortos e ultrapassar os receios e ter sempre a alegria de acreditar que, enquanto houver jogo, é para jogar.

E é isso, bola para a frente e foco na baliza. A vitória é difícil mas é nossa.

Dias felizes, Francisco e, para já, um fim de semana tranquilo e bom.