sábado, maio 22, 2021

A Serva-Mor e o seu pequeno servo

 

Numa praça, um grupo de pessoas comenta o assalto a uma loja. Uns dizem que a loja não estava bem fechada e que a culpa foi do dono. Outros dizem que a culpa é dos polícias que passavam por ali e nada fizeram nem para alertar o dono nem para evitar que os ladrões se servissem. Outros dizem que se calhar quem roubou foram alguns clientes que bem conheciam os cantos à casa e as fraquezas do dono. Outros dizem que a culpa foi do presidente da Junta que nada faz para prevenir casos destes. Outros dizem que podem ter sido alguns fornecedores que observaram como se faziam negócios ali, sem grande rigor. Outros, ainda, dizem que a culpa é também do jornal da terra que conhecendo tudo o que ali se passava, em vez de denunciar as vulnerabilidades da loja, só para conseguir que o lojista pagasse um anúncio, não fazia outra coisa senão enaltecê-lo.

Quem ouça aquele grupo de vizinhos dirá que, afinal, todos anteviam que o roubo iria acontecer. Mas se todos sabiam e nada fizeram não são, também eles, responsáveis pelo que aconteceu?

Até que os mais ilustres resolveram criar uma comissão e fazer um inquérito. Aplauso geral. Boa! Um inquérito é que é.

Para conduzir o inquérito escolheram a mais inflamada e sentenciadora das vizinhas, a Serva-Mor do clube religioso das Servas da Moral, conhecida por gostar de chicotear e espezinhar os pecadores.

Durante meses, os vizinhos sentaram-se no largo a presenciar o interrogatório a que a Serva-Mor sujeitava os suspeitos.

Quanto mais ele acusava e insultava mais a populaça salivava e aplaudia. O jornalista da terra ia noticiando. Um folhetim. 

Pelo pelourinho passaram quase todos os que se conheciam. 

Todos eram suspeitos: o dono, a família e amigos do dono, os clientes, os fornecedores, os polícias, até os próprios vizinhos. Todos. 

A todos ela insistia que enumerassem os pertences que tinham em casa, os presentes que tinham dado aos filhos, aos pais, aos netos e avós, as contas do banco, o dinehiro escondido no colchão. Queria pormenores: quantas notas, quantas moedas. De cada vez que alguém se esquecia de alguma coisa a Serva fazia esgares de desconfiança e todos os que assistiam faziam iguais esgares. Parecia que todos tinham algo a esconder. Os próprios, quando confrontados com a sua falta de memória, assustados e enervados, suavam de aflição. Mas, mal passavam para a audiência e outro ocupava o pelourinho, debaixo do fogo cerrado de ódio e malvadez da Serva-Mor, logo ululavam de gozo por verem os outros a sofrer. 'Ladrões! Ladrões!' gritava em surdina a turbamulta. Aos olhos de cada um os outros eram todos uns vendidos, uns ladrões. Aos olhos de cada um todos os outros mereciam arder no fogo dos infernos.

Duraram meses as inquirições. Meses e meses, senão anos.

Produziram-se centenas de artigos, centenas de vídeos. Cada relatório tinha centenas de volumes. 

Se alguns duvidavam da utilidade daquilo, logo outros saltavam em defesa da Serva, dizendo que sim, que fazia todo o sentido, todos tinham o direito a saber o que se passava, que todos tinham o direito a ouvir as explicações, que a Serva fazia bem em pôr a nu os podres da sociedade. 

A Serva-Mor não dava tréguas nem mostras de querer abrandar. Pelo contrário: aos poucos as orelhas foram-se afilando, os olhos entortando, os dedos curvando-se em garras, os caninos sobressaindo, os ares de justiceira implacável acentuando-se. 

A seu lado um servo redigia afanosamente os relatórios. Enquanto a Serva insultava os inquiridos, ele ia rosnando entredentes e o mínimo que se lhe ouvia era 'malfeitores incompetentes' mas, na maior parte das vezes, era um chorrilho: 'tratantes, escroques, patifes, vígaros''. Se detectava algum desagrado por parte de alguma pessoa na assistência, logo ele disparava: 'ultrajante e inqualificável!' e, pouco subtilmente, segredava ao ouvido da Serva, a sua sinistra musa inspiradora: 'Olha aquela, até sinto náuseas. Lamentável e inqualificável atitude a atitude dela'

Meses e meses nisto. Anos nisto.

Enquanto isso, as outras lojas iam sendo bem ou mal geridas como sempre foram e sempre serão, algumas delas sendo de vez em quando assaltadas, como sempre foram e sempre serão (em especial quando a malta está distraída a brincar aos justiceiros e aos inquisidores), alguns clientes iam tirando partido da distração do dono, alguns fornecedores aproveitando para fazer das suas, os polícias iam fazendo as suas rondas, nem sempre muito atentas, o jornalista ia fazendo inflamados artigos para vender mais e... tudo continuou exactamente igual ao que era antes.

Contudo, com o tempo, a malta foi percebendo que aquilo não era nada, que dali não nascia nada de útil, que tudo continuava na mesma, que aqueles interrogatórios eram apenas uma forma da Serva-Mor tirar um mórbido prazer em chicotear as suas vítimas e uma forma de cada um, à vez, se sentir melhor que os outros mas que esse prazer era efémero, espúrio e, sobretudo, inútil.

Por fim, na praça, restava apenas a Serva-Mor e o seu leal pequeno e inútil servo. Quem por ali passava já nem reparava: a Serva bofeteava e pontapeava o servo e este, em sangue, implorava perdão. Mas ninguém queria saber.

E, como sempre acontece com o que é irrelevante, tudo isto passou à história. Já ninguém guarda memória nem do que esteve na origem de tudo, nem do que por ali se passou, nem da sinistra Serva, muito menos da pequena figura que tanto a bajulou.


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As pinturas são de Rothko.
No texto, qualquer semelhança com a realidade não é aparência nem coincidência, 
é apenas um momento de diversão (ou outra coisa qualquer).

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E tenham um belo sábado

4 comentários:

Anónimo disse...

Olá UJM.O rigor que é exigido a um funcionário do banco ao submeter um crédito é tal que se falta uma porra de uma vírgula ele vem para trás.A pressão(objetivos que só são concretizáveis com pressão sobre os clientes) é tanta que a maior parte anda drunfado(não vendes não prestas).Em 2014 os do BES pensaram durante muito tempo que íam ser todos despedidos(mais uns drunfes para aguentarem)alguns recomeçaram a fumar.Não não estavam recolhidos nos seus gabinetes estavam á frente de clientes alguns a culpá.los do que estava a acontecer.as TVs bombavam se bombavam mais num dia esse dia era ainda pior.um terror.UJM alguém tinha de lhes fazer aquelas perguntas -não vale de nada?não é a forma correta? Para mim é.Aqui a inocente vê melhor como se divide o mundo.

Anónimo disse...

O seu objectivo face aos dois textos que aqui deixou é a crítica gratuita e até achincalhamento do Parlamento. Nem o Presidente, que é do partido da sua simpatia foi poupado como parece estar a poupar os delinquentes. Sim, são delinquentes e é preciso deixar isso claro.
Fico à espera de sinais...

João Lisboa disse...

"A todos ela insistia que enumerassem os pertences que tinham em casa, os presentes que tinham dado aos filhos, aos pais, aos netos e avós, as contas do banco, o dinehiro escondido no colchão. Queria pormenores: quantas notas, quantas moedas. De cada vez que alguém se esquecia de alguma coisa a Serva fazia esgares de desconfiança e todos os que assistiam faziam iguais esgares. Parecia que todos tinham algo a esconder. Os próprios, quando confrontados com a sua falta de memória, assustados e enervados, suavam de aflição"

UJM, quer parecer-me que não tem razão nenhuma.

Pela muito simples razão de que não se trata de uma história de assalto a uma lojeca de bairro mas - evidentemente - do caso BES/Novo Banco e da corja de meliantes que o espatifaram. Porque, aqui, sim, sem a menor dúvida, o tamanho importa, e mede-se em milhares de milhões que todos temos vindo (e continuaremos) a pagar. "Os pertences que tinham em casa, os presentes que tinham dado aos filhos, aos pais, aos netos e avós, as contas do banco, o dinehiro escondido no colchão" são nossos. E não "parecia que todos tinham algo a esconder", todos têm, realmente, imenso a esconder, a "falta de memória" é obscenamente postiça e, quando ficam "assustados e enervados, e suam de aflição" é, justamente, por terem absoluta consciência e memória muito viva dos desmandos em que participaram.

O estilo de Grande-Inquisidora da Mortágua (mas também da Cecilia Meireles, do CDS) é irritante, patético e pouco recomendável? Talvez. Mas convenhamos que, perante o desfile de escroques - até agora totalmente convencidos da sua espessa impunidade - que lhes passa pela frente, não é fácil manter uma atitude fria, distante e objectiva.

Para que serve? Pelo menos, para dar nomes aos bois e nunca mais ser possível olhá-los e ouvi-los sem que, instantaneamente, nos recordamos deste filme de gangsters de que são protagonistas.

Paulo B disse...

É um bom conto. Na linha argumentativa de que o povo se contenta com pão e circo.
No entanto, a realidade é bem mais complexa. E o circo não é só entretenimento nem é sempre o mesmo.

PS: a UJM tem razão numa coisa - o circo não resolve nada. No entanto, UJM, sem o circo, não há condições para mudar nada. Ele é o espaço que permite a consciencialização de fenómenos que de outra forma procuramos ignorar. É dele (do circo) que provêem as condições para que as coisas se alterem. Para o bem ou para o mal. Sim, pela esquerda ou pela direita (porque, sim, esta divisão ainda faz sentido). E quando nada é feito, é o artista de circo que vinga.