domingo, janeiro 31, 2021

Charlotte e os livros

 


No parapeito desta sala há agora um pequeno monte de livros. Esta casa tem isto de que gosto bastante: parapeitos baixos. Claro que tenho que me conter para não fazer de todos eles uma prateleira. Parece que tenho sempre coisas que não sei onde pôr e que ali é que ficavam meio a jeito. Evito. Tento não me esquecer que é suposto aqui respeitar algum minimalismo. Mas aqui teve que ser, não tinha outro lugar onde pudesse pôr os livros que quero ter aqui ao pé de mim. Fui trazendo um, depois outro e agora aqui estão. Um cocktail que não sei se diz muito de mim ou se prova é que reina aqui a confusão. Só não mostro pois podem algumas almas mais sensíveis ficar incomodadas com a visão de livros misturados com décors. Livros são livros são livros e mostrá-los numa estante ou num parapeito pode ofender a sensibilidade das mariazinhas de serviço. Melhor, pois, ser prudente pois, nisto, nunca se sabe. E, depois, há quem pense que os livros são tudo e outros, armados em pretensos cínicos, dizem que são é coisa nenhuma. Claro que o tema é controverso e uns são a favor e outros, em especial os que mais valia que usassem aparelho nos dentes ou botinhas ortopédicas, são do contra. 

Disclaimer despachado, passo aos factos.

Ao fim de semana, à tardinha, gosto de me reclinar neste sofá e, antes, ir ali ao parapeito escolher um livro. Quando chego a casa, se o estore estiver levantado, vejo a pilha de livros. Gosto de ver. Do lado de fora as flores e, do lado de dentro, livros e a cortina que pouco mais deixa ver.

Agora, aqui a meu lado, Manguel fala de Borges. Gosta de falar dele. E percebe-se. Quando alguém nos impressiona, a gente gosta de recordar o que conversou com essa pessoa. 

Hoje de manhã, um amigo ligou-me. Só para saber se estou bem, então, que é feito?, essas coisas. Falou-me dele, do filho, de amigos comuns. Depois relembrou uma coisa que um amigo comum, pessoa invulgar e verdadeiramente superior, uma vez tinha dito. Também me recordo muito das conversas que tive com esse ser tão especial. Foi com ele que aprendi que havia uma coisa chamada bird watching. Lembro-me bem do meu espanto quando o sabia a ir em expedição. Conhecia o país por dentro. Serras, beira de rios, orla marítima, dunas, falésias. Era em estado de felicidade que falava nisso e nas espécies que pensava ir encontrar. Na altura, sobrepunha-se em mim o espírito utilitário, desconhecia o prazer da contemplação.

Para fotografar?
Poderia ser mas no meu caso não, só para ver.
Nem desenhar?
Não, só para ver.
Não percebo. Vai a um sítio só para olhar?
Sim, isso, só para olhar.
E depois regressa, sem mais nada?
Sem mais nada, não. Já vi os pássaros.
Deve ser chato...
Não, nada.
Ai... não percebo.
Experimente.

Neto de uma das pessoas relevantes da nossa cultura, herdeiro de várias obras, herdeiro, por exemplo, de uma das casas icónicas desse avô. Casado com uma brilhante pianista, pai de muitos filhos, todos virados para as artes, ele era uma pessoa verdadeiramente especial. Havia quem o achasse um bocado etéreo. Talvez fosse mas só às vezes. Tinha um lado muito pragmático. Era, sobretudo, uma pessoa de cultura e uma pessoa de bem.

Quando o mundo anda infectado com pessoas más, de má índole, pessoas cruéis, maldosas, é com alguma saudade e alegria que penso em todas as pessoas extraordinárias e com bom coração que tenho conhecido. Esta pessoa de quem hoje falámos era dessas pessoas. De uma enorme delicadeza, de uma enorme humildade. Conversávamos e eu ouvia-o, encantada. Este outro que me ligou também é um pouco assim. Telefona-me sempre no dia dos meus anos. A mim que nunca consegui fixar o dia dos seus anos. Liga-me pelo Natal. E liga-me quando quer saber de mim. E eu, que fico sempre contente quando ele me liga, nunca me lembro de ser eu a tomar a iniciativa. Outras vezes para me dar más notícias, mas isso eu sei logo pela sua voz, quando me diz o primeiro olá. Conhecemo-nos há nem sei quantos anos e sempre foi uma amizade sem mácula. Há pessoas que atravessam a vida deixando boas recordações, partilhando a elegância de uma irrepreensível maneira de ser. 

Queixava-se hoje que, vivendo agora essencialmente no campo, com estas restrições nem consegue ir ver exposições na cidade mais próxima, ir à livraria de cujo livreiro já se tornou amigo ou ao atelier de um amigo que vive noutra cidade. Nem pode vir a Lisboa, cidade da qual se sente cada vez mais distante mas onde tem casa que lhe serve de base quando vem a concertos ou a conferências. O filho também procurou uma vida que nada tem a ver com a formação de base e vive agora entre França e uma outra pequena cidade do país profundo, não muito longe dele. 

Hoje contou-me que um dos seus infinitos sobrinhos vive agora não muito longe de mim, depois de ter vivido vários anos fora. Tinha ido para lá renegando o país, achando que lá fora é que era bom. Afinal, estando lá, desiludiu-se, sentiu falta dos amigos, da família, do seu país. Gostei de ouvir. 

Custa-me muito saber quando alguém sai do nosso país e se porta como um deslumbrado, como uma saloio, renegando o seu próprio país. Custa-me sobretudo que falem mal do seu país usando a língua portuguesa. Acho isso de uma cobardia e desrespeito vergonhosos. Gente assim não merece perdão. Em contrapartida, fico feliz quando alguém conhece a vida noutros países e regressa, com saudades, feliz por vir viver entre os seus. Trabalha comigo um jovem assim. Conheci-o ainda vivendo lá. Namora uma jovem de lá. Custou-lhe deixá-la lá mas não conseguiu deixar de vir. Gosto muito quando ele fala de lá e de como não se arrepende de ter regressado. Sem lhe confessar, sinto-me agradecida, quase emocionada.

Bem. 

Quanto ao dia de hoje, nada a reportar. Continuo a apanhar as camélias que caem, pondo-as nos vasos ou, as mais amarelecidas, na caleira da própria cameleira. Estava entretida nisto, passou um casal, a caminhar, desejando-me uma sorridente boa tarde. De manhã, quando andávamos a caminhar, do jardim de uma casa veio um sonoro bom dia infantil. Era uma sorridente menina com longos cabelos espalhados pelos ombros que nos fazia adeus. Estava sentada perto da entrada da casa, a brincar com uma boneca. Perto dela, o pai arranjava um arbusto. Sorriu-nos e disse também bom dia.

E pouco mais aconteceu digno de registo, pelo menos que me lembre. Cirando por aqui, cozinho, lavo e estendo roupa, trato da casa, falo ao telefone, fotografo, ando por aqui neste desconcertante fare niente.


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Antes de me ir, partilho convosco o que diz Charlotte da sua relação com os livros. Fez-se uma mulher muito bonita. Não é de estranhar: quer do lado da mãe, quer do pai só poderia ter herdado beleza. E, para além de bonita, parece muito simpática, tem um ar doce, por vezes um pouco sonhador. Sorri enquanto fala. Mas a voz grave e o maxilar bem desenhado deixam prever uma personalidade forte. Lindamente vestida, Charlotte não é apenas a bela nova embaixadora Chanel, é também alguém que gosta de livros e, por isso, é com todo o gosto que lhe passo a palavra:

In the library of Charlotte Casiraghi — CHANEL


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Desejo-vos um belo dia de domingo

2 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Riqueza,
O amor nas suas mais variadas formas é tão belo, podermos falar bem dos outros é um sinal inequívoco da nossa capacidade de amar.

Lindas camélias ❤️

Um belo domingo!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

E que bom ouvir a Princesa Charlotte falar sobre livros, sempre bonita, não por acaso foi um das minhas "celebrity crushes" da adolescência.

Bom serão!