sábado, novembro 07, 2020

Retrato de um dia normal que acaba com um tango de amor.

 


Vi na capa da Revista do Expresso que o MEC está fechado em casa desde Março. Pode estar-se bem em casa e não ter vontade de sair para o mundo. Eu gosto muito de estar em casa e cada vez mais. Deixei de ter vontade de frequentar os meios que frequentei até meados de março deste ano. Contudo, ao fim de poucos dias já me apetece dar uma volta, ainda que pequena. Claro que todas as semanas vou a casa da minha mãe. Mas, tirando alguma excepção, é ir, estar com ela, regressar. Claro, todos os dias fazemos uma caminhada. Mas é uma caminhada por aqui mesmo. Se calhar fazemos uns cinco quilómetros, mas é um percurso, todos os dias variável e aleatório, apenas nas redondezas. Não conta como 'sair'.

Hoje, ao fim da tarde, noite já estupidamente cerrada, fomos até à outra casa buscar o correio, ver se estava tudo bem, as janelas bem fechadas. Estava com receio que algum vidro estivesse aberto e, com esta chuva, seria complicado. E aproveitámos para ir à farmácia. E fui a supermercado lá perto comprar gengibre cristalizado e um produto para móveis de madeira de que gosto muito. Sou muito de produtos de limpeza. Gosto de produtos que limpem bem e tratem o que limpam e que cheirem bem. Um dia que tenha o tempo por minha conta hei-de aprofundar o meu conhecimento de produtos de limpeza. Gosto de os cheirar, mas agora com a máscara não dá. Vou pelo nome, pela imagem. E, para verdadeiramente variar a nossa rotina, fomos buscar comida feita: filetes de peixe galo com arroz de legumes e ovas de pescada cozidas com todos. Trouxemos as caixas. No entanto, os filetes e o arroz estavam muito bem servidos. Foi o nosso jantar. Guardei as ovas e respectivo acompanhamento numa caixa de vidro e ficará para outro dia. 

Soube-me bem andar pela cidade, percorrer caminhos que durante tantos anos foram os meus. Gostei mas sem saudosismo. Foi apenas a sensação de andar por lugares conhecidos. Ou melhor: a sensação boa de andar a passear à noite, o tempo frio e húmido. Mas não sinto saudades. É uma página virada.

No entanto, uma coisa estranhei, uma coisa que me incomodou. Por aqui, andamos sem nos cruzarmos com quem quer que seja. De vez em quando há um carro que entra ou sai numa casa, ou algum jardineiro que sai de uma casa para pôr utensílios numa carrinha. Pouco mais. Quem está, está em casa. Para aí uma vez por semana vamos ao supermercado. É um supermercado pequeno e as poucas pessoas que lá andam, andam de máscara. Hoje, na cidade, senti muita diferença. Parecia que não havia covid nem dever de confinamento. Com os passeios cheios de gente, algumas pessoas sem máscara, senti algum desconforto. Desviava-me, com algum receio. Há pessoas que parece que ainda não perceberam. Acredito que, ao ar livre, as probabilidades de contágio são diminutas. Contudo, em ruas com muita gente a cruzar-se em permanência, há que ter cuidado e não vi esse cuidado em mais pessoas do que estava à espera. Somos animais de hábitos, é bem verdade. E rapidamente os adquirimos. Não há muito, apenas alguns meses, eu andava no meio da confusão, frequentava lugares cheios de gente e nem dava por isso. Estava tudo bem. Escadas rolantes com gente à frente, atrás ou a passar-me ao lado, restaurantes cheios, lojas cheias. Tudo me era normal. Agora cruzo-me com algumas pessoas, tentando manter o distanciamento, e parece que até tenho medo das que andam sem máscara e se preparam para, desinteressadamente, passar perto de mim. Se isto se prolongar, talvez me torne um bicho do mato, apenas habituada a conviver por via remota. 

Tirando isso: choveu muito de noite. De dia também choveu mas já não chuva tão forte. Não sei se já contei que tenho um pequeno canteiro de flores mesmo debaixo da janela do meu quarto. Hoje estavam meio tombadas tanto o peso da chuva. São lindas mas, pelo que vejo, frágeis. A relva, sob a abóbada de buganvílias, está cheia de pétalas rosa, fúcsia, carmins: a chuva faz cair mais rapidamente as pétalas. Continuam tão bonitas. Encanto-me com a sua delicadeza e cor. Há um pequeno arbusto que não sabia o que era e que agora está com umas flores a despontar. São tão afirmativas e perfeitas que acredito que talvez sejam camélias. A ver se amanhã uso a app de reconhecimento. Também aqui começam a aparecer os cogumelos mas são mais trabalhados do que os que rebentam da terra in heaven. Os pássaros comem os bagos das romãs. Nas árvores ficam as cascas vazias. Há sempre melros (e também corvos? -- tenho que aprender a distingui-los) a debicar estes belos frutos. Tenho apanhado as que resistem. Hoje de manhã misturei kefir, dióspiro, baguinhos de romã, cajus, arandos e canela. Tão bom, tão bom. Começo o dia com alegria, comendo estas coisas. Depois, um café quentinho, cremoso. A alma quente.

Esta sexta-feira, a seguir ao almoço, resolvi ir arrumar os LP's. Comecei por fazer o que sempre faço, quando entro numa de arrumações. Tudo no chão, a fazer montes por género. Os do Zeca, os do Vitorino, os do Sérgio Godinho, os do Adriano. Os brasileiros: Gal, Bethânia, Chico, Gilberto Gil, Rita Lee, Ney, Simone. Os Beatle, Bob Dylan. Joan Baez. Janis Joplin. Paul Simon. Simon and Garfunkel.  David Bowie. Etc. Blues, Jazz. A pilha maior: a dita clássica. Depois resolvi ir buscar um pano para limpar bem. Depois não encontrava um pano. Fui à cave à procura. Na cave, pus-me a arrumar coisas. Quando encontrei o pano de que andava à procura já era hora de ir trabalhar. Há bocado o meu marido foi ao sótão e, ao regressar, perguntou-me porque é que o chão estava pejado de discos. Como se não soubesse. Pode não ser adepto dos meus métodos mas conhece-os. A ver se este fim de semana limpo e arrumo tudo isso, incluindo também os cds. A questão é que sobra um cabo que não descobrimos onde se liga e, não sei se por isso, aquilo não toca. É mau, isso. Arrumar tudo vai dificultar virar aquilo ao contrário para ligar mas não gosto de ter coisas por arrumar.

Quanto ao Trump nem sei já o que dizer. Desconhece o que é a dignidade. Vai sair pela porta baixa. Vai acabar falido, miserável, sozinho. E o Bannon, aquela monstruosa e sinistra figura, agora ainda mais aterrador com aquele cabelame comprido, vai acabar no manicómio. Patifes e psicopatas. Não me apetece falar deles. Uma era sombria da história.

O que vale é que já estamos no fim de semana. Aleluia.


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Nestes dias em que escrevo sem ter nada que dizer, escrevendo apenas porque me apetece escrever, chego ao fim a sentir que o mais certo é estar a defraudar as expectativas de quem aqui venha esperando encontrar alguma coisa que se aproveite; e, por isso, a ver se compenso minimamente a paciência de quem tanto me atura, sinto vontade de oferecer alguma coisa que seja bonita, boa de receber.

Assim é hoje. Aceitem, pois, o Tango of Love de Eleni Karaindrou. Gosto de tangos e espero um dia ir aprender e andar pelos ares como estas mulheres que aqui rodopiam. Espero que também gostem -- da música, de dançar, de querer andar pelos ares, de voar nos braços de quem amam (mesmo que só em imaginação).


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As maravilhosas fotografias fazem parte das vencedoras do International Photography Awards™ 2020 e vêm ao som de, lá em cima, By the sea, também de Eleni Karaindrou 
(também deve ser bom dançar junto ao mar)

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Desejo-vos um bom sábado.
Saúde e alegria

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