domingo, julho 05, 2020

Sim, já tive fantasmas





Houve uma altura, quando eu era pequena, em que tinha medo de fantasmas. Consigo, claramente, situar a origem desse medo. Nasceu de histórias que uma colega nos contava. Andaria eu na antiga 4ª classe, fui apanhar uma colega bem mais velha, muito repetente, com irmãos mais velhos, muitas vivências. Trazia-nos conhecimentos que, sem questionar, tomávamos por bons. A esta distância penso que teria dado uma boa ficcionista. Mas esses seus dotes eram ocultos, só os revelava quando nos juntávamos em sua volta, ávidas de novidades invulgares. Talvez por acharmos que algo ali era ilícito ou ameaçador, não falávamos disso a quem quer que fosse. De resto, ela não ligava à escola, só lá andava por obrigação. Não se esforçava, não queria saber de não ter aproveitamento. Tinha jeito para cozinhar, ficou cozinheira. Acabou por se casar com um empregado de mesa e, mais tarde, conheci-a como a chef da cozinha do seu próprio restaurante, no qual o marido era o chefe de sala. Estava realizada e feliz.

Mas, nesses longínquos dias em que nos assustava, ela era, sobretudo, uma contadora de histórias. Com ar de quem dizia a mais pura das verdades, ela contava sobre um sítio em que se soltavam gemidos de dentro das paredes, em que a meio da noite se ouviam gritos que ela escutava, transida de medo, e onde, quando de manhã se levantava, via facas espetadas na parede de onde escorria um espesso fio de sangue. Eu ouvia aquilo cheia de medo. E duvidava: 'Não acredito, não pode ser'. Mas ela jurava por tudo o que tinha de mais sagrado que era verdade, dizia que, se eu não acreditava, então que pedisse aos meus pais para lá ir passar a noite. Eu estremecia. Ela continuava: 'De noite, a meio da noite, sinto uma mão fria passar-me pela cara, depois um gato a miar e a fugir, apavorado'. Nós ficávamos em silêncio. Ela acrescentava: 'O mais estranho é que não há gato nenhum lá em casa'. Nós não dizíamos nada, estarrecidas.

Quando entrei para o liceu, ficava muitas vezes parte do dia sozinha em casa. Se calhava ter aulas só de manhã e isso coincidir com um ano em que a minha mãe dava aulas à tarde, ficava em casa sozinha. Lia, lia, lia. Penso que já o contei. Por um lado, era muito bom, fazia o que queria. O pior era o resto. Por essa altura, caíu-me nas mãos o livro de contos de Edgar Allan Poe. Devorava-o, cada vez mais gelada. Acabava o conto e temia sair do quarto não fosse ouvir um gemido a sair da parede ou dar com um gato inexistente estrangulado. Ficava, então, imóvel, a tentar ouvir algum som suspeito, tolhida de medo, ansiando que fosse hora dos meus pais chegarem a casa. Claro que não lhes contava nada. Por um lado, suspeitava que estava a ser tola, que os receios eram infundados. Por outro, não queria que soubessem que, em vez de estudar, passava o tempo a ler tudo o que apanhava, mesmo intuindo que não eram coisas 'para a minha idade'. Por isso, foi à socapa que, durante uns bons anos, sofri em silêncio o medo de fantasmas. Agora que escrevo penso: não, não era de fantasmas, era de almas de outro mundo. Era assim que essa minha colega falava: almas do outro mundo. 

Felizmente não era todos os dias que essa ideia me assaltava. Se os livros que me vinham parar às mãos eram sobre outras coisas, era para aí que eu viajava e as almas do outro mundo deixavam de me aterrorizar.

Só mais recentemente é que voltei a pensar nisso e conto porquê.

O chão da minha casa é de madeira. Quando tínhamos a nossa cãzinha, ela dormia na sua caminha num recanto da cozinha. Contudo, a meio da noite levantava-se e vinha deitar-se no nosso quarto. No verão, ia para debaixo da nossa cama. No inverno, para cima -- sobre o edredon, ficava entre mim e o meu marido. Quando ia para baixo da cama, o movimento que fazia para se agachar e para se ajeitar fazia um barulho muito peculiar, as unhas roçando na madeira do chão. Pois bem, dias depois de ter morrido, acordámos sobressaltados com esse barulho. Acendemos a luz assustados. Espreitámos. Obviamente nada. Apagámos a luz e, pouco depois, o mesmo arranhar de unhas. Ficámos meio atordoados, eu francamente assustada. Até que percebemos que devia ter sido um pássaro que deveria ter ficado preso na chaminé do prédio ou não sei onde. Durante vários dias, à noite, acordávamos com este som misterioso que parecia mesmo o da nossa amiguinha que se tinha ido. Sem falar nisso, pensava que era a alma da minha querida Nhu-Nhu. Até que o som desapareceu. Em vinte e dois anos que levamos a morar nesta casa, foi a única vez que tal aconteceu e logo, por uma estranha coincidência, nos dias que se seguiram à morte daquela que ainda hoje recordamos com saudade.

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As fotografias são da autoria de Lachlan Bailey e acompanham David Gilmour e Romany Gilmour em Yes, I Have Ghosts


E é bem dentro deste mundo que vos desejo um belo dia de domingo

3 comentários:

Paulo B disse...

Ah! Também Fã do Allen Poe, hein!
(Eu nem sou muito fã de terror ou suspense... Ainda hoje essas histórias incomodam-me). Mas o.Poe.. espectáculo!
Tenho esse livro.

E o velho Lou também era fã:
https://youtu.be/cLkb3r5Xpkg
(Este álbum é uma tentativa de musicar contos do Poe).

Bom domingo!

Anónimo disse...

Kkkkkkkkk

AV disse...

Gostei do seu texto sobre a sua ‘cãzinha’ e da ternura que transparece nele. O meu cãozinho tinha hábitos semelhantes e, tal como a sua, deixou uma saudade imensa.
Bom Domingo.