sexta-feira, junho 19, 2020

Sem fantasia




Conhecer-te-ia? Saberia reconhecer-te quando és uma pessoa normal, feita de carne e osso e não apenas de palavras? Se o acaso da vida nos pusesse frente a frente -- e será que nunca nos pôs? -- saberia eu quem tu és? O teu olhar será igual aos teus silêncios? As pausas ao falares serão idênticas às palavras que não dizes quando escreves?

Sabes? Quando me imagino, não estou. Quando me imagino, estou a chegar. Eu a chegar e tu a apareceres ou eu a chegar e tu à minha espera, alguém sentado à minha espera, sorrindo à minha chegada, sorrindo, de surpresa, ao me veres. Quando me imagino, sou o vulto que chega sabendo que vai partir mas fazendo de conta que não. Não, fazendo de conta não. Não me lembrando de que terei que partir. Não imagino, pois, o momento da partida. Quando me imagino ainda estou. E tu estás a olhar e a sorrir para mim. A atravessar uma rua, sentados à volta de uma mesa, olhando-nos junto a um elevador. Momentos assim. Fragmentos. Peças de um puzzle inexistente.


Se me imaginar sentada à tua frente, talvez numa esplanada ou talvez sentada ao teu lado na muralha do rio, talvez sentada na relva junto ao tronco de uma árvore, de que falaríamos? De livros? Dir-me-ias poemas? Ou apenas respiraríamos em conjunto, como se não quiséssemos poluir o momento com palavras talvez pouco exactas? Ou experimentaríamos aquela inexplicável familiaridade que acontece quando duas pessoas se conhecem de outras vidas, de outros tempos? Ou sentiríamos antecipadamente as saudades de talvez nos não voltarmos a ver?

Olha: se fosse agora, estaríamos com máscara? O que achas? Eu acho que não. Não, não estaríamos. Não poderíamos desperdiçar a breve e única possibilidade de sentirmos a proximidade, de ouvirmos a voz sem filtros, o rosto inteiro. ignoraríamos o distanciamento, esqueceríamos a realidade.

Escuta: há quanto tempo nos conhecemos? Desde há uns anos? Desde sempre? Que peculiares e insólitos laços invisíveis são estes que nos unem? Ou não há laços nem estamos unidos e isto são apenas palavras desprovidas de sentido? O que dizes? Aposto que não dizes nada. Eu também não digo nada, prefiro o mistério, o infinito enigma. Desvenda-o se quiseres. Desvenda-me se fores capaz.


Mas se, por um instante, eu conseguir acreditar que existe uma ínfima e absurda probabilidade de um dia te materializares junto a mim e que, apesar de ser aburda a probabilidade de isso acontecer, nos reconheceríamos mesmo, o que te diria?

Já sei. Talvez te pedisse: diz-me uma música que eu ouça quando quiser pensar em ti. Ou: diz-me um livro em que eu pense quando quiser pensar em ti. Ou: conta-me uma história que eu recorde quando quiser recordar-me de ti. Ou: não digas nada para eu respirar o teu silêncio quando o silêncio sem ti for um vazio grande demais para mim. Ou: olha os meus olhos para eu ficar com o teu olhar para sempre dentro de mim. 

Nada explica o que não tem explicação. As palavras são disfarces, são refúgios, subterfúgios, armadilhas, recantos, segredos, mentiras, inocências, fantasias, doçuras, gume, afago, convite, sonho, sobressalto, simples conjuntos de letras. E os afectos são abstracções. E o resto é espaço que flutua em nossa volta.

Por isso, de novo te pergunto: se te encontrasse, reconhecer-te-ia? Reconhecer-me-ias? Os nossos corpos reconhecer-se-iam? Fora as fantasias, quererias ter-me junto a ti? Quereria eu ter-te junto a mim?

Ou não existes?
Se calhar, não.
E eu? Será que existo?
O que achas?

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Como é bom de ver, pinturas de Chagall

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E uma bela e happy friday a todos vós

3 comentários:

João Lisboa disse...

Com fantasia, evidentemente.

disse...

Olá, UJM!
Texto de escrita criativa, logo com fantasia. Mas a propósito, desta sua história, e nada a ver com encontros às escondidas - encontros amorosos - nem com "reconhecer-te-ia", "reconhecer-me-ias" muito menos com corpos "os nossos corpos reconhecer-se-iam", o que é facto é que por detrás de um blogue está a pessoa que escreve, logo de carne e osso. E a propósito lembrei-me que há uns anos estive num recinto público apinhado de gente e que acabei por falar disso no blogue - à minha maneira, com fotos e vídeo - e mais dois autores de outros dois blogues também fizeram publicação. O mais engraçado é que as fotografias são do mesmo local à mesma hora. Mas não fomos juntos e nem havia a probabilidade de saber que aquela pessoa ali era o autor PMS e Cuca, a pirata - não nos conhecemos! No entanto as fotografias publicadas nos blogues de cada um de nós os três mostram que estivemos "juntos" sem na realidade termos estado!
Desculpe este lençol...
Bom fim-de-semana

" R y k @ r d o " disse...

Gostei muito desta publicação
.
Tenha um dia feliz
Cumprimentos