domingo, junho 21, 2020

Pedro Lima, Anthony Bourdain e outras pessoas bem sucedidas





Não sigo telenovelas portuguesas pelo que o que conheço de Pedro Lima, enquanto actor de novelas, é o que vejo nos pequenos anúncios aos episódios do dia que, de vez em quando, de passagem, apanho. A ideia que tenho é que tem tido sempre trabalho, o que é natural dado ser um homem muito bonito, um galã que dá sempre jeito em qualquer 'peça'. Tenho também ideia de que, volta e meia, o via, sempre sorridente, em actividades daquelas para as quais convidam os actores. Sem exuberâncias mas com afabilidade. Mas não sei, pois, ajuizar sobre o seu talento. Nunca o vi em palco, no teatro, pelo que, também daí, não poderei pronunciar-me. Pessoa que me é próxima conhecia-o do surf mas também apenas hoje soube disso. 

A ideia que tinha dele é que seria um actor sóbrio, discreto, pouco dado a mediatismos. Mas simpático, sereno. Tenho ideia de vê-lo sorridente. Tenho ideia dele com a mulher e com um bando de filhos. Uma família feliz. Um homem bem resolvido.

Soube também hoje dos seus feitos desportivos. Não fazia ideia. Contudo, com aquele corpo é natural que tivesse força e energia para vencer as provas que venceu e que, por outro lado, aqueles músculos tenham vindo da prática continuada de desporto.


Por isso, o espanto ainda foi maior quando li que aparentemente se terá suicidado. A minha filha esteve a mostrar-me fotografias dele no Instagram. Bem disposto, apaixonado, amável, brincalhão. Tentei perceber se o sorriso e a boa disposição seriam máscaras para algum desconforto ou tristeza mas, nas fotografias, não detectei nada disso. A última fotografia mostra-o escultural, pronto para o surf, festejando o regresso à vida normal.

A mesma surpresa senti quando soube da morte de Anthony Bourdain. Gostava muito de ver os seus programas. Irreverente, empático, amante do insólito, curioso em relação ao pouco óbvio. Dizia ele dele próprio ser uma pessoa cheia de sorte: fazia o que queria, quando queria, onde queria, com quem queria. Com amigos em todo o lado. Um homem de aspecto possante, viril. Uma pessoa absolutamente bem sucedida, conhecida em todo o lado. Brincalhão, bon vivant.

Até ao dia que se soube que, ao contrário do que parecia, era tímido, frequentemente inseguro e com um fundo depressivo. Há um vídeo feito pouco antes de ter decidido pôr fim à sua vida: nos copos com os amigos, divertido. Certamente encobrindo o que lhe ia na alma.

Estava a escrever e a pensar em Bernardo Sassetti, cuja morte também muito me impressionou. Não sei se caíu sem querer ou se também não suportou mais. Mas sei que me custou muito.

Em tempos o vocalista de uma banda suicidou-se e a mulher mostrou fotografias em que ele aparecia pouco antes, com ela e creio que com os filhos. Estava sorridente, parecia feliz. A mulher, em sofrimento, perguntava: vendo-o assim, rindo, em família, quem é que poderia adivinhar o que estava prestes a acontecer?

Não sei causas. Não sei o que se passou com o Pedro Lima. Não sei se foi suicídio (embora as notícias o indiciem) e, se foi, se foi por depressão, problemas financeiros ou outros. Sei que, a ter sido suicídio, deve ter sido pela mesma razão que leva alguém -- mesmo as pessoas mais talentosas, na flor ou a meio da vida -- a pôr termo à vida: não aguentam mais. Quem está de fora não percebe: mas não aguentam mais o quê? Com a vida quase inteira pela frente, amados pela família e amigos, respeitados pelos conhecidos e pelo público em geral, como não aguentam mais? O que lhes falta para que, como a maior parte das pessoas, consigam superar algum constrangimento, algum escolho, alguma ameaça ou temor? O que lhes falta, se os conhecemos tão talentosos e se os sabemos tão especiais?

Não sei. Talvez lhes falte a coragem para pedirem ajuda.

A minha filha referia o caso de um nosso conhecido: pessoa descontraída, praticante de desporto, do mais divertido que há, profissionalmente bem sucedido, na altura com uma namorada linda e amorosa, com uma família que o adorava, com um nível de vida a que nada faltava. E, no entanto, quem poderia dizer que, contra toda a lógica, viesse a ter um problema de droga? Quem poderia dizer que gastava tudo o que ganhava e se endividava por todo o lado, junto de familiares, amigos e sabe-se lá de quem mais, sempre arranjando desculpas convincentes, vindo a ter sérios problemas por não poder pagar as dívidas que ia acumulando? Quem poderia antever que viria a deixar o trabalho e ter que ir viver para um lugar recôndito não apenas para ver se se curava como para os traficantes e demais amigos e inimigos dessas andanças deixassem de persegui-lo? E, no entanto, ninguém, ninguém mesmo, nem mesmo os mais próximos, sequer suspeitaram do que estava a passar-se.

Quem vê caras não vê corações, quem vê sorrisos não sabe o que se esconde por debaixo. A mente por vezes cava sulcos ou abre buracos negros de que é difícil sair. 

Nestas histórias não há, muitas vezes, fins felizes. Há desistência. E muita dor e perplexidade por parte dos que ficam.  E se há alguma coisa que se possa retirar de situações que se aproximam do limite é que há que lhes prestar muita atenção para tentar ajudar. Não é fácil. Quem está com depressões profundas ou quem tem problemas muito sérios frequentemente não quer preocupar a família e os amigos pelo que não quer assumir aquilo por que está a passar, prefere disfarçar, prefere esconder as trevas que os assombram, mostrando uma alegria que é apenas aparente. Estas coisas deveriam ser mais faladas para que as pessoas que sofrem em silêncio se encham de coragem e peçam ajuda, para que pensem um pouco nelas e não apenas em poupar os outros.

A vida breve dos que não aguentam mais deveria ser uma vela acesa na opinião pública para que nunca nos esqueçamos de fazer sentir aos que precisam de ajuda que devem pedi-la: por eles e por aqueles que os amam.


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Pinturas de Mark Rothko que pintou as trevas antes de nelas mergulhar, 
com acompanhamento de Noite por Bernardo Sassetti

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Desejo-vos um bom dia de domingo

12 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

"A vida breve dos que não aguentam mais deveria ser uma vela acesa na opinião pública para que nunca nos esqueçamos de fazer sentir aos que precisam de ajuda que devem pedi-la: por eles e por aqueles que os amam."

Sem dúvida. E de permeio também denunciar a ideologia charlatã de que tudo podemos bastando ter força de vontade, que estamos cotados para o triunfo, que não podemos mostrar fragilidades e que estas podem ser combatidas com passes de mágica.

Todo o sofrimento tem uma história que no fundo não é assim tão secreta, quando passa o estado de negação perante a tragédia as pessoas têm geralmente a oportunidade de a compreender.

Um bom domingo.

" R y k @ r d o " disse...

Bom dia:- Dentro do meu respeitoso silêncio digo: "" Descansa em Paz, Pedro Lima ""
.
Um domingo feliz
Cumprimentos poéticos

Pôr do Sol disse...

A eterna duvida.

Ser preciso muita coragem para o fazer ou a total ausencia dela para dar a volta por cima e poupar tamanha dor aos que cá ficam?

Que seja um bom domingo.



redonda disse...

Não me parece que seja falta de coragem para pedir ajuda mas não acreditar que seja possível ajuda.

Anónimo disse...

A maioria das pessoas com depressão normalmente pede ajuda. O problema é que estando num estado mais frágil do que seria normal, qualquer comentário mais negativo ou o descaso de quem está do outro lado invariavelmente fere, e as pessoas para se defenderem passam a esconder o que se passa por dentro. Quanto mais bem sucedida é uma pessoa mais difícil é pedir ajuda, porque o mundo é cão e as competências das pessoas passam a ser postas em causa. Infelizmente trata-se de uma seleção natural que ainda não tem fim à vista e mesmo quem se mostra muito solidário nestes momentos de estupefação, no dia a dia não tem paciência para dar a mão a quem precisa. Espero que a vida feliz que o Pedro Lima teve tenha compensado este triste final e que seja recordado pela família e amigos como o homem completo que era.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

"Espero que a vida feliz que o Pedro Lima teve tenha compensado este triste final"

Discordo totalmente, uma vez que uma vida feliz não poderá redundar sequer na violência da auto-destruição, quanto mais compensá-la.

Muito embora no quadro das perturbações internalizantes se verifique maior procura de ajuda, dados da DGS, indicam que apenas cerca de 40% das pessoas a quem foram diagnosticados quadros depressivos major iniciaram tratamento no ano de eclosão dos sintomas e a mediana de atraso de início dos tratamentos após eclosão dos sintomas é de 4 anos. E depois não conta apenas procurar ajuda, conta a qualidade da ajuda que infelizmente continua a ser muito baseada na farmacologia em exclusivo.

Paulo B disse...

Concordo com a crítica do Francisco sobre a inadequação desse último parágrafo. Mas revejo-me no restante comentário do anónimo. A resposta aos pedidos de ajuda parece ser má, especialmente na ajuda técnica de primeira linha. É que a porta de entrada muitas vezes é o próprio centro de saúde. Tantas vezes estruturas precárias em termos físicos e humanos, contacto cronometrado com o utente, etc etc.
Ainda não nos tínhamos restabelecido das consequências ao nível da saúde mental da crise de 2011 e aí está uma nova. Dupla.
Outro problema preocupante nesta área é a saúde mental dos mais velhos. Para mais uma população em crescendo. É impressionante o estado vegetativo galopante em que se encontra está população, a que não deve ser alheio o cocktail de calmantes, antidepressivos e afins que lhes são servidos.

Depois há também o problema de fundo: a vida contemporânea, as contradições que encerra, o sistema social e económico. Mas isso até é o mais difícil de mudar. Ao menos que se mude a resposta pública / do SNS.

Anónimo disse...

E mesmo a ajuda que não é baseada em fármacos é muitas vezes tecnicista, arrogante e muito pouco empática. Conclusão: ou arranjas forças e humor dentro de ti ou estás desgraçado!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Exatíssimamente! A resposta é péssima e não poderia ser outra com um rácio de 2,5 psicólogos/100000 habitantes nos Cuidados Primários e com espaços desadequados.

Os psicofármacos são importantes nalguns casos, mas o seu uso deve ser limitado no tempo, salvo patologia muito grave, o que tem o potencial verdadeiramente resolutivo é a psicoterapia, no entanto com o modelo de Saúde Mental que continuamos a promover o que acabamos por ter são dependentes para toda a vida dos mesmos fármacos. Mais ainda, muitas das prescrições são excessivas relativamente aos casos.

Um bom dia a todos.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Infelizmente é verdade. O reconhecimento da "igualdade na diferença" é um princípio fundamental ao ato de colaboração que é a prática clínica.

Estevão disse...

" ... é preciso falarmos de suicídio. Sem tabus."

https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2020/06/23/sem-tabus-como-chegamos-aqui-como-saimos-daqui/

Lucy disse...

A Natália Luiza disse tudo