segunda-feira, junho 22, 2020

Eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir





Para que serve a poesia?, perguntarão alguns. Imagino que muitos tratados já terão sido escritos sobre isso, muitas teses já terão sido expostas enunciando hipóteses, desfiando certezas. Eu não sou de sabedorias ou certezas e, nisto das poesias, sou mais de sensações. Não sei interpretar nem dissertar. Sou mais de gostar ou não gostar, de me soar ou não bem. Os meus instintos prevalecem sobre a razão -- quase sempre na vida e, na poesia, sobremaneira. Tenho que ali sentir uma toada que me toque, tem que haver a elegância da palavra subtil, tenho que sentir que o silêncio predomina, tenho que sentir que há o vagar da destilação gota a gota, e que, do que se vai produzindo, se evola o perfume e a luz dos momentos sagrados.

E, depois de o ler ou ouvir, algumas cordas em mim deverão continuar a vibrar sem perceber que isso acontece porque, sem dar por tal, me reconheci na palavra que me define ou que define o que sinto.


Cada vez estou mais exigente. E nem sei se diga exigente se experiente. Não, experiente talvez não. Talvez mais privada nos meus gostos. Coisas cá minhas. O que dantes me parecia uma combinação feliz de palavras para descrever um sentimento ou uma impressão, agora, muitas vezes, parece-me coisa banal, forjada, forçada, procura de efeito fácil.

Outras vezes, poemas de poetas aclamados que leio em versão portuguesa parecem-me exercícios de escrita descuidada, sem melodia ou emoção, tradução infantil ou apressada, agarrada a uma gramática acéfala. Por exemplo, em geral, não consigo ler poemas traduzidos por Ana Luísa Amaral ou Frederico Lourenço. Dá ideia que traduzem palavra a palavra sem terem a sensibilidade necessária para captar o estado de espírito e a intenção de quem os escreveu no original. Aliás, para não correr o risco dessas desatenções desagradáveis, evito ler poemas em português de poetas estrangeiros. Acho que não há muitos tradutores capazes de me cativarem na tradução de poesia. Talvez haja um ou dois. Casos raros, especialíssimos. Um muito em particular. Not a private dancer, a dancer for love, mas um private translator. É um trabalho de minúcia, de relojoaria, de bordado fino, um trabalho feito com desvelo e em busca da nota perfeita, a nota de som, a nota de perfume.

Pode acontecer que um poema, instintivamente, brote como água pura de entre as pedras e as palavras sejam límpidas e perfeitas. Palavras ditadas por um misterioso deus. Mas pode também acontecer que, depois de desbastada a pedra, haja ainda um fino trabalho de limar, de afagar, de amaciar. O amor dos amantes perfeitos. 


E poetas portugueses, actuais, vivos, também os não há em quantidade. Tenho o privilégio de, com grande assiduidade, ler poemas de um poeta que me encanta: tem um blog e, portanto, não sou a única privilegiada. Apetecia-me puxar para aqui alguns dos seus poemas, tecelagem amorosa, toada cristalina. Mas não o faço. Receio macular a beleza das suas palavras. Ali respiram a luz e o silêncio que habitam aquele lugar. Há nelas uma pureza branca que pousa no meu coração e que, sinto sem sombra de dúvida, ali ficam a cintilar. É o que se espera da poesia de verdade.

E talvez, no fundo, seja isso que faz com que eu goste de um poema -- sentir-lhe a verdade, que é como quem diz as suas vísceras.

E talvez seja para isso que, afinal, a poesia serve: para que nos sintamos felizes, especiais, únicos, por conseguirmos tocar a verdade, essa coisa tão íntima, de outra pessoa.


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Em vez de poemas desse Poeta especial, coloco antes um poema (do qual também extraí o título deste post) de um poeta da língua portuguesa e dito por uma pessoa que o sabe dizer com a contenção e simplicidade de que a poesia precisa:

Ausência de Viniciu de Moraes dito por Marília Gabriela

(...)
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


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Gravuras de Anna Atkins (British, 1799 - 1871) e Anne Dixon (British, 1799 - 1877)
enquanto se ouve Ayub Ogada a interpretar Kothbiro (The Constant Gardener)
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A si que aí está desse lado desejo uma boa semana.
Saúde, paz e alegria.

1 comentário:

Gato Aurélio disse...

...eu raramente leio poesia traduzida para português. Deve ser muito difícil traduzir os sentimentos alheios sem os vestir com os do tradutor.
Gosto mais de ler poesia escrita, em português, por homens do que por mulheres mas não consigo perceber porquê...
A poesia, para mim, tem o dom de condensar em textos curtos o que eu penso do mundo, dos sentimentos, da vida... obriga-me a refletir sobre o sentido de cada palavra, porque nenhuma delas é usada ao acaso, e fico maravilhada com a capacidade dos poetas exporem tão bem os meus pensamentos :-)