quarta-feira, abril 29, 2020

Solilóquio de uma mulher que deixou de ser consumista





Há coisa que não tem jeito. Faz nem sei quanto tempo que não consumo. Abstinência total. Um bom comportamento de dar direito a medalhinha. 

Curioso é que nem fiquei de ressaca. Nada. Parece que esqueci o tempo em que consumir fazia parte da minha vida.

Curioso, também, que nem sequer sonhei.
Digo isto porque, depois de ter deixado de fumar, volta e meia sonhava que fumava. Longas inspirações. Ou aspirações, tanto dá. Depois expirava lentamente. Aquele prazer. E invariavelmente, nessa altura, acordava num sobressalto, tinha voltado a fumas, tinha-me esquecido de que já não fumava. Até que, aos poucos vinha a mim e percebia que tinha sido um sonho. Mas aquela sensação tinha sido absolutamente verdadeira. Custava a voltar a adormecer, tão intrigada ficava com aqueilo: tinha mesmo revivido a sensação de fumar.
Mas nada. Nada mesmo. Nem blusinha, e tanto que gosto de blusa fininha de seda, nem brinquinho, e se eu sou amarradona em brinquinho, nem um chanelinho, e se eu curto um cincozinho. Nem livrinho. Nada. Livrinho novo, nada. Tanto que eu gostava de andar a fazer-me rogada, que só ia olhar de longe, que nem pensassem que iria bandear-me, no way, já estou bem servida, não preciso de mais, só olhar que olhar não arranca bocado. Mas depois, já cedendo à tentação, toda eu a inclinar-me para o pecado. Se me parecia de bom verbo, de bom aspecto, elegante, bom ao toque, já eu me sentia a cair, toda eu a arrastar a asa. Saía de lá com um pela mão. Ou mais. Em dias de gula e destempero, já era um em cada mão, ou, se era para a desgraça, uns três ou mais encostados ao peito.

Chegava a casa e cheirava-os, espreitava-lhes os interiores, passava-lhes a mão pela lombada. Um prazer. Abrir ao acaso, ler, perceber como eram quando apanhados na curva, sem aviso prévio. Tão bom que era.

Há quanto tempo.

Asceta dos quatro costados, agora. Enfiada no campo, roupa do fundo das gavetas do fundo, sem uma gotinha de perfume que se justifique, toda eu entregue à comidinha caseira, a passeios pelo campo, fotografia a toda a hora de florzinha simplória. Esta agora sou eu.

Está certo que, pelo meio, faço outras coisas mas isso agora não interessa para nadinha.

Num desses pelo meio nova discussão: está na hora de se regressar ao local de antes do merdinhas? Eu acho que a coisa tem que ser na base da prudência, só regressar quem tem que regressar, manter as empresas a trabalhar mas da forma mais segura possível. Mas claro que se isto, por um lado, bate tudo certo e parece sensato, por outro, implica que mais gente como eu se torna não consumista. E, se isto é muito lindo, a verdade é que toda a gente que trabalha neste tipo de comércio vê a vida a andar para trás. Claro que aparecerão novas actividades, claro que tudo, aos poucos, se reajustará. Mas, pelo meio, os donos das grandes torres de escritórios e das grandes catedrais de consumo devem estar a deitar contas à vida. Quanto desemprego para tanta gente?
A propósito: li que um dos donos do Colombo é um dos futuros donos da Brisa. Ui. Numa altura em que as contas do Colombo devem andar pelas ruas da amargura vai assinar pela concessão de autoestradas que estão vazias. Coitados dos que estão à espera de bons rendimentos à conta destes investimentos. 
Adiante que, à noite, no meio do campo, a minha mente não tem nada que se esgueirar por tão ínvios caminhos.

Dizia eu. Isto do consumo. Coisa perversa. Penso: mas será que estou capaz para voltar a uma livraria? Passar a mão neles, pegar-lhes? E se algum corona ranhoso lá pousou? Quem garante que uma tosse ou uma mão contaminada não o contaminaram também?

E blusinha linda? Vou provar? Vou pegar numa coisa em que outras mãos pegaram?

Mas também para quê? Preciso lá eu de mais alguma coisa?

Ando nisto, nesta divergência entre mim e mim. Quando vou voltar a circular para além do básico? Vou ao supermercado e já me chega. Trabalho em casa. Ando pelo campo. Estou bem assim. Quando puder circular, irei ver os meus amores e amorzinhos. E eles poderão vir cá. E tudo ficará melhor ainda.

Mas vai ser esta a vida? A minha? A de todos os reconvertidos? 

Recebi uma sms da simpática cabeleireira de bairro onde ia quando o rei fazia anos. Diz que podemos contar com o cuidado dela. Coitada, tenho pensado tanto nela. Mas vou lá fazer o quê? Quando preciso de cortar no cabelo, pego numa tesoura a corto.

Paguei outra vez o mês inteiro à senhora que lá ia a casa, na cidade, uma vez por semana limpar a casa e passar a ferro. A casa está vazia há mês e meio. Quando vou voltar a precisar de limpezas semanais naquela casa? E vou querer que uma pessoa que circula por várias casas por lá ande,  pela minha casa, mexendo em tudo? Mas coitada dela. 

E estou nisto. Cheia de dúvidas. A cabeça dividida. Sem saber para que lado orientar os neurónios. Os chamados mixed feelings.


Vá lá que, quando a cabeça precisa de se alienar ou não atina com o caminho, há os vídeos que caem do céu para me tirarem dos becos de onde não sei sair.

Pode ser uma que não faço ideia quem seja ou outra que idem. Não faz mal. Ponho-me a ver e gosto. E gostos não se discutem, ora essa. E se aparecem a mostrar a casa ainda melhor. Gosto de ver casas. Excepto as escuras, as armadas ao pingarelho ou as desnaturadas. Mas estas que o meu amigo me recomendou são bonitas. Gostei.




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As pinturas são de Maqbool Fida Husain que, à primeira vista, não me parece que vá muito à bola com o Smile interpretado pelo David Gilmour. Mas quem sabe se à segunda...

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E uma boa quarta-feira. Saúde e carapaus para o gato.

9 comentários:

Maria Santana disse...

Revejo-me completamente neste seu post!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Eu nesse campo não tenho grandes dúvidas, é parcimónia, que a carteira não se pode dar a extras.

Por falar em limpezas, a minha avó materna contava uma anedota (não sei se baseada em factos reais) de uma criada que quando a patroa lhe perguntava se a loiça estava bem lavada respondia assim: "Lavadinha, minha senhora! Sete águas e um esfregão e a língua dum cão".

Um rico dia.

Lúcio Ferro disse...

E carapaus para a gata. :-)

Estevão disse...

Para o caso de interessar, aqui vai a minha opinião sobre a empregada.
Não é só um problema de saúde a equacionar, mas também um problema de devassa de muito da nossa vida privada.

A título de exemplo, e também para que problemas destes sejam vistos de outro ângulo, a senhora que faz a limpeza do prédio onde resido e que ocupa o resto do seu tempo em trabalhos como o descrito, relata-me assim a sua situação:

- Veja lá, ela agora não quer que eu vá, paga-me na mesma e diz que depois acertamos contas. Pediu-me o NIB, depositou o dinheiro e mandou-se esta mensagem. Ou seja, parece que me está a dar, mas eu é que lhe estou a dever. De certeza que vai querer que eu compense. Vou ter que dar pelo menos mais duas horas para abater ao que lhe devo. Se lhe der mais duas horas já não posso ir para a senhora … . E que é que vou dizer? Tantos anos a trabalhar para esta senhora e agora digo-lhe que não posso ir. Então não era muito melhor ela dizer que já não me queria? Arranjava outra senhora e ficava tudo resolvido. Só me arranjam problemas. Vou ter que pedir à minha filha para me ajudar, para dar umas horas. Mas a minha filha também tem a vida dela …

Acresce dizer que esta senhora sabe demasiado acerca das pessoas para quem trabalha. Ou por ver, ou por ouvir, ou por ler, ou por cheirar, ou por a empregada da vizinha lhe contar, ou por via de outros familiares, etcétera, etcétera …
Está na altura de repensarmos se compensa pagar este preço para termos, como alguns dos clientes desta senhora, peúgas passadas a ferro ou outras coisas de que podemos muito bem prescindir.

Já agora, eu também tive aqueles sonhos recriminatórios quando deixei de fumar. Acordava e adormecia com complexos de culpa. E sonhava, sonhava com uma boca a cheirar a tabaco. Oh se sonhava. E nos transportes lá me ia chegando para junto de quem fedia a tabaco. Mas que tempos! Eram tempos em que o desaparecido macacário dizia que beijar uma mulher que fuma é como lamber um cinzas. Lol.

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria Santana,

A nossa vida levou um piparote, não foi? Nem a gente sabe bem a quantas anda, parece que já nem sabemos se vamos voltar a sermos como éramos. Não é? Uma coisa meio confusa...

Um dia bom para si.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Pois é, os tempos não andam fáceis. Um afundanço geral na economia. Uma reviravolta total na vida de toda a gente. Tempos que apelam à criatividade, à ousadia. Pode parecer um lugar comum mas acredito , e estou a constatar, que há, nisto, também muitas oportunidades.

Essa que contou é boa e é adequada para as pessoas que têm a mania das limpezas: Sete águas e um esfregão e a língua dum cão. Soa-me bem!

Abraço, Francisco!

Um Jeito Manso disse...

Olá Lúcio,

E sabe que por aqui agora não vejo o gatinho cor de mel nem o outro que volta e meia espreita, um cinzento, preto e branco. Agora anda aqui um caozinho. Vem ter comigo. Fica a uns dois metros a olhar para mim. Se calhar, por causa disso é que os gatinhos andam fugidos.

Acho imensa graça. Andam como se isto fosse deles. E é.

Dias felizes, LF.

Um Jeito Manso disse...

Olá Unknown,

Eu com isso não me importo. Passam-se meses que não a vejo. Tem a casa por conta dela. Anda por lá sozinha, durante as horas em que trabalha. Não quero saber do que conta. A mim não me conta nada. Se calha, de muitos em muitos meses, cruzar-me com ela, é olá, como está?, e a família também bem?, adeus até à próxima. Não há espaço para fofoca.

Se ela receber o que lhe estou a pagar com desconfiança, é coisa dela, que não me afecta.

O que me preocupa mesmo é não saber se faz sentido continuar a contar com ela, não sabendo se, de facto, vou voltar a precisar do seu trabalho. Não consigo ainda perceber o que vai ser a minha vida. Voltarei ao que era a minha vida normal? Não sei mesmo.

Quanto ao tabaco, é daquelas coisas de que me orgulho. Sou uma ex-fumadora. E nunca recaí. Deixei de fumar por mim, parei e nunca mais. E sinto-me bem com esta decisão.

Não se sente também orgulhoso? Recaíu?

Paulo B disse...

Olá UJM,

É uma oportunidade única de colocarmos um travão a sério nesta sociedade de consumo desenfreado. A maioria dos problemas que levanta apenas o são numa sociedade em que o motor é o consumo. Especialmente o consumo desenfreado.
Preocupa-me (lamento na verdade) que não haja um único sinal de construir um modo de vida diferente, mais compatível com a natureza que nos suporta, que não nos trate como meras máquinas de "fazer dinheiro" e de consumo.
Aliás, se há coisa que é óbvia neste choque é que com o sistema que temos serão sempre os mais vulneráveis aqueles que mais vão perder e sofrer. E ao contrário da lenga lenga sempre subjacente nas crises que vivemos até aqui (praticamente sempre e só económicas - aquelas que nos lembramos), essa vulnerabilidade nem sequer é intrínseca a uma suposta fraqueza das pessoas, comunidades ou países. Não. A vulnerabilidade é claramente causada pelo sistema.
As pessoas com quem se preocupa por esta pausa no sistema são vulneráveis porque o sistema as deixa nessa posição vulnerável. E retomar esse sistema irá exatamente reproduzir esse problema eternamente.
As retoma é o momento nem que assumimos que afinal terão de morrer alguns dos vulneráveis. Porque é necessário. Porque o sistema não pode parar. Porque sabemos que o sistema mata. Lembre-mo-nos e batamos palmas por esses heróis. Que vão morrer (sem se terem sequer voluntariado para tal) na tentativa de que a vida continue tal como era. não seria mais digno se morressem em nome da mudança?

Abraço!