sexta-feira, abril 10, 2020

Em dia de chuva, frio e cansaço
-- eu e outros bichos indefinidos tais como os drones que sobrevoam um mundo em quarentena





Depois de várias reuniões coladas umas às outras, duas até se sobrepondo levando-me a chegar muito atrasada a uma delas, coisa que detesto, cheguei ao fim da última muito saturada. Tinham, entretanto, chegado mais uns quantos mails e mensagens mas não consegui ficar sentada a encetar mais uma maratona. Durante uma reunião, tinha também desligado uma chamada dizendo que ligava de volta mas, com as reuniões sem intervalo entre elas, não consegui fazê-lo. Pensei, vou dar uma volta, vou lá para baixo, vou andar, e levo o telemóvel e, enquanto ando, vou ver as mensagens e fotografias da família que entretanto também tinham chegado, os meninos a fazerem trabalhinhos ou a brincarem, e depois logo telefono ao meu colega e depois, logo que regresse a casa, volto a sentar-me para responder aos mails.

E, de telemóvel na mão, pus pernas a caminho não sem antes pegar na máquina para ir fotografando as maravilhosas e perfeitíssimas florzinhas que enchem o campo. Chuviscava. Ao andar, parecia estar dentro de uma suave nuvem. Tudo em cinza névoa, frio, o cabelo a ficar humedecido, as calças a esfriarem, o frio a passar-me para as pernas. E observando a graciosidade das cores, a delicadeza das gotas de chuva sobre as folhinhas, sobre as pequenas flores. Os passarinhos cantando -- e como cantam, cantam numa alegria, cantam como se estivessem sozinhos e livres na natureza, cantam como se não sentissem a minha presença -- e eu andando por ali, devagar, em silêncio.

Olhei o céu. Nem uma nesga, todo ele encoberto, como se inexistente. Pensei outra vez: há tanto tempo que não vejo um avião. Hoje não o veria mas saberia que, lá por cima, algum estaria a passar. Há pouco vi imagens do aeroporto, uma imagem verdadeiramente desoladora, os aviões todos em terra. Nunca antes se poderia imaginar uma coisa assim. É a imagem de um mundo que se julgava imune a riscos e que, em três meses, baqueou. É o planeta a respirar.

Mas, dizia eu, vinha eu, devagar, tentando alhear-me das preocupações do dia -- fotografando, telefonando à minha mãe, olhando a natureza que é tão perfeita, tão diversa na sua imensa beleza -- quando senti que estava já cheia de frio. Pensei, agora vou ter que mudar de roupa, aquecer-me, senão não consigo pôr-me a trabalhar ou telefonar. Mas estava cansada, a sentir-me com sono. Então, cedi. Assim mesmo como estava, deitei-mo no sofá, tapei-me com uma mantinha. E deixei-me dormir. Dormi profundamente. Quando acordei não fazia ideia se tinha dormido uns minutos ou um ano. O meu marido disse que quase uma hora.

Já não consegui telefonar, nem eram já horas para isso. Fico aqui com um peso na consciência mas tenho que me conceder o direito de, por vezes, deixar coisas por fazer. E também já não consegui ir tratar dos mails. E fiquei a pensar que nem sequer respondi ao mail no qual vários colaboradores desejavam uns aos outros, e a mim também, boa Páscoa.
A Páscoa a mim pouco ou nada me diz e se desejo boa Páscoa é no sentido de passarem um dia feliz mas, neste actual contexto, não me parece lógico fazer de conta que pode ser um dia feliz, pelo menos como antes era. Claro que um dia pode ser sempre um dia bom mas eu não atribuo significado religioso ao dia e, não sendo também um dia de festa e encontro familiar, para que hei-de estar a fazer de conta? 
Portanto, fiquei a pensar no que devia fazer, mas sem energia para me mexer.

Felizmente ainda havia o resto de peito de frango, com farinheira e maçã, feito no forno, com arroz de legumes a acompanhar, que tinha feito ontem, pelo que pude ficar a preguiçar até ir jantar. Ao almoço fiz maruca cozida com todos e pensei logo que, para o jantar, não teria que fazer nada.

Entretanto, já falei também com a minha filha, com o meu filho, vi os meninos. E continuei preguiçosa, preguiçosa, sem fazer nada. De vez em quando pensava que na segunda-feira tenho que aparecer com dois planos de acção e que o melhor era pensar nisso, começar a alinhavá-los. Mas não fui capaz de mexer uma palha.

E agora ainda continuo assim, com uma manta meio enrolada nas pernas, indolente.

Penso no que quero fazer esta sexta-feira santa, sem reuniões ou telefonemas de trabalho. Espero que não chova para poder enxugar a roupa, para poder varrer à vontade, para poder lavar o chão sem que fique todo o dia molhado. E espero conseguir ler. E espero conseguir chegar a esta hora e não me sentir como estou a sentir-me agora, sem energia, sem inspiração ou motivação.

Ainda por cima a rede está péssima. De vez em quando tudo pára, isto fica branco, um pequeno circulozinho a andar à roda, o computador sem saber o que fazer enquanto o sinal não volta. Portanto, nada ajuda, nem o tempo chuvoso e frio, nem a rede a pedal, nem a minha ausência de energia.

E, tirando isso, nada. Li que os gatos apanham o corona, li que os cães parece que não.

E constato que há línguas que não domino nem sei como arranhar e não sei como aprender. Como se fosse coisa de um planeta distante, inatingível.

E tento adivinhar o que vem a seguir e não sei. E tento pensar qual o limite para isto e não sei.

E penso nas reuniões que tive: cenários, break-even, preparar o recomeço, cortes, nebulosas, incertezas, inquietações. E afasto isso do pensamento. Penso no que a rapariga me disse, no outro dia, ao telefone: tenho a escola para pagar, a prestação do banco, tantas despesas. Afasto do pensamento.

E, agora, enquanto escrevo, ouço um piar alto e prolongado e penso que deve ser um mocho lá fora, chamando alguém na noite. Ou uma coruja. E penso que não sei qual a diferença entre mocho e coruja. E penso que não deveria dizer 'alguém' quando digo que o piar é a chamar alguém, mas depois mantenho. Um bicho é alguém.

Estou a lembrar-me também que, desde que aqui estou, já por duas vezes cortei o cabelo. Vou à rua, pego no cabelo e na tesoura e dou-lhe umas tesouradas. Penso ainda noutra coisa: desde que aqui estou, em quarentena, deixei de usar soutien. Não se percebe que estou assim, nas video conferências (acho eu). Não sei como farei quando tiver que voltar a usá-lo. Penso que pode acontecer que me habitue a viver neste estado de boa selvagem. Se estivesse calor, também andaria descalça. Se estivesse ainda mais calor andaria nua. Quando me sentasse em videoconferência vestia apenas um top, para disfarçar.

E, por hoje, mais nada. Desculpem que não responda nem agradeça os comentários. Hoje estou assim.


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Era para partilhar fotografias minhas mas não consegui ir buscá-las à máquina. Aliás, nem sei onde a deixei. Se calhar, está na cozinha. Por isso, optei por estes bichos que são assim um bocado como eu, seres híbridos, nem isto nem aquilo, ou meio isto, meio aquilo, na realidade nada de concreto. São obra de Arne Olav Gurvin Fredriksen e, se vos apetecer, podem ver muitos mais no GYYPORAMA.

Acho uma heresia ter aqui a June Tabor. Mas é mesmo porque gosto absolutamente dela. Não relativamente. Em absoluto, mesmo. E este He Fades Away é muito bonito e eu gosto muito de a ouvir a dizer que
There's a man in my bed I used to love him
His kisses used to take my breath away
There's a man in my bed I hardly know him
I wipe his face and hold his hand
And watch him as he slowly fades away

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E os bichos drones que andam por alguns ares o que vêem é isto:

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Uma boa sexta-feira 

7 comentários:

lidiasantos almeida sousa disse...

UM ESPANTO COMO SEMPRE. DA ADMIRADORA CONVICTA SEM VÍRUS. AU REVOIR..

GG disse...

Olá ujm,
Há vários tipos de Corona e o dos gatos nem sequer é o mesmo da covid 19. Nem o deles está no grupo das zoonoses. Esse dos gatos está mais do que identificado pois provoca-lhes uma peritonite quase sempre fatal.

Por causa da estupidez do modo como são ditas as coisas lá haverá mais uns bastardos a abandonar os coitados. 🙃
Uma Santa Páscoa
Bjs

João Lisboa disse...

Esse processo de assilvestramento, em modo urbano, pode passar pelo crescimento lento mas persistente de uma barba de eremita. Nem sei se, quando chegar o momento da inevitável tosquia, saberei fazê-la (nunca esteve em tão frondoso estado).

A Juns Tabor podia tornar-se residente fixa. :-)

Um Jeito Manso disse...

Olá Lídia, mulher tempestade que vai e vem,

Fico sempre contente quando a vejo por aqui. Espero que esteja tudo bem consigo, os problemas de Paris a caminho de se resolverem.

Nunca mais por aqui apareceu com fofocas da classe política, com revelações bombásticas. Sinto a falta do vendaval que as suas revelações sempre traziam.

Um abraço, Madame Lídia. Cuide de si. Saúde.

Um Jeito Manso disse...

Olá GG,

Pois disso não sei mas, se é como diz (e acredito que seja, claro), ainda bem que o diz. Se bem que eu tenha para mim que gato deve ser mesmo bicho vadio, bicho para andar por onde lhe dê na veneta.

Que nem de propósito, hoje o gato cor de mel quase veio ter comigo. Um gato tão bonito. Será que algum dia ele quererá entrar em casa? Não sei o que faria. Deixá-lo-ia ficar? Acho os gatos uns animais tão independentes, tão inteligentes.

Uns dias bons para si, GG. Paz e saúde.

Um Jeito Manso disse...

Olá João,

Cabelos brancos compridos, barba branca comprida, túnica branca. Um eremita mesmo, daqueles que se recolhem nos antigos templos, fazendo votos de silêncio? Consigo imaginá-lo assim. Calças largas, sandálias, um lírio do campo na mão para colocar num copo com água. Caminhando por entre claustros, pátios com laranjeiras a meio. Depois recolhendo-se à cela e ouvir June Tabor, dando graças por tanta beleza.

Um bom sábado, João.

João Lisboa disse...

:-)))))

Não será bem, bem assim mas já é uma aproximação.