terça-feira, março 03, 2020

Mestre Alfredo, no seu cantinho, nobre guardião das memórias do Lorvão







Será talvez por preguiça ou comodismo que não vão conhecer-se lugares lindos que, facilmente, se podem ver indo e vindo no mesmo dia. Isto, bem entendido, para quem tem meios de locomoção e condições para o fazer. 
Faço esta observação porque tendo a escrever como se todas as pessoas que me lêem tivessem condições idênticas às minhas. Mas basta a gente andar pelo interior do país para perceber que uma coisa é viver numa cidade grande, onde, mal ou bem, se pode fazer quase tudo o que se quer e outra é viver numa aldeia ou numa pequena vila em que as possibilidades de tudo são, a todos os níveis, bem mais escassas.
Acabei de vir de lá e já estou com vontade de lá voltar. Não é a primeira vez que passeamos por aquelas bandas. Mas o país é tão micro maravilhoso que a gente pode estar por ali perto e ficar sem conhecer lugares lindos mesmo ali ao lado. 


Quando começo a escrever penso que tenho que me conter, dosear nos adjectivos. Penso que quem não vê as coisas com um olhar inocente como o meu, é bem capaz de achar que exagero, que não é nada assim como o descrevo, transbordante de belezura. Mas, mal começo, já estou a contar tal como a minha cabeça processa o que vê, uma torrente de encantamento.

Atrás do comboiozinho feito de troncos de madeira, a escada que leva ao Cantinho do Alfredo

Esta segunda-feira, mal acordei fiz o que faço quase todos os dias: fui ver a rua, banhar o olhar nas águas do rio. Mas desta vez o rio era outro. Chovia e estava frio, não consegui ir para a varanda. Fiquei à porta do quarto e, com a máquina, ia aproximando a imagem até onde a minha visão míope não alcançava. Os patos que voavam e desciam  para continuarem deslizando, aproveitando a corrente, os ramos nus e argênteos das árvores, os pássaros que atravessam os ares soltando gritos que se perdem entre as ramagens -- e eu, quase em êxtase, longe de tudo, apenas e toda ali. Eis senão vi uma coisa estranha, clara, por vezes quase parecia que era luminosa, uma coisa que vinha à superfície, ondulando sob e sobre a água. De vez em quando levantava a cabeça, quase como um periscópio branco e orgânico. Quis fotografar e quase não consegui. Estava distante, as águas corriam, a coisa serpenteava e a chuva ainda menos ajudava. Impossível de focar. Pensei que estava a ver o monstro de Loch Ness mas em ponto pequeno, talvez uma cria do dito. Agora estive a ver as tentativas de fotografia e o melhor que consegui foi isto que aqui abaixo vos mostro. E reparo agora como a coisa é comprida. E diga, sem souber, de que se trata. Uma lampreia?


Mas hoje quero contar-vos a visita que fizemos ao Lorvão. Estando nós instalados sobre um braço de rio na Barragem da Aguieira e tendo tão pouco tempo, circunscrevemo-nos aos lugares mais ou menos em redor, que são vários e todos lindos.



Um deles foi o Lorvão. Parece um daqueles lugares mágicos, envoltos em esquecimento, em neblina e em beleza. É certo que o dia chuvoso ajudou à imagem mas estou em crer que, mesmo em dias de sol e calor, a beleza se mantém.


Dado o adiantado da hora, não vou deter-me no Mosteiro que é imponente, austero e que, para falar francamente, me pareceu triste e meio abandonado, com um senhor com cara de poucos amigos a enunciar que poderia fazer uma visita. Uma vez mais fiquei com pena. O País tem obras extraordinárias e tantas delas são pouco conhecidas, mal divulgadas.


Mas do que quero falar é do Cantinho do Alfredo. Instalado numa sala do mosteiro aberta ao exterior, ali está o Mestre Alfredo, artesão de Lorvão, fazendo as suas peças em xisto e madeira que representam a memória do lugar. 


Segundo ele, muito do que as freiras fizeram, casas no exterior do mosteiro, está hoje ao abandono. E ele, com a ajuda de fotografias ou da sua memória ou da memória local ou dos conhecimentos do historiador da terra vai tentando reproduzir. E com que pormenor e cuidado o faz e com que entrega delas fala. Tem também peças para vender e eu trouxe uma casinha de xisto.


Mas a graça maior de tudo aquilo é que as peças têm vida, a água corre, a nora move-se, as luzes acendem-se. Mostrou e explicou cada peça, com orgulho no seu trabalho e na beleza da sua terra e, ao mesmo tempo, mostrando preocupação pelo abandono das coisas, pela terra com pouca vida, com receio de que tudo se perca.


E, lá dentro, mostrou-nos também a terrível roda dos enjeitados, mostrando como funcionava. Tempos de miséria. Olhei sentindo tristeza por todas as mães que ali foram entregar os seus bebés por não terem como criá-los.

No fim, perguntei se me autorizava a fotografá-lo e logo se dispôs a isso. Não tem mail para eu lhe enviar as fotografias ou o link para esta minha humilde homenagem mas talvez lhe escreva um postal a dizer-lhe que gostei muito de conhecê-lo.

Mestre Alfredo, guardião das memórias do Lorvão
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E a ver se amanhã vos falo de uma livraria ímpar

2 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Também já fui de fim-de-semana para essa zona há uns 16 anos, a sua reportagem avivou-em a memória de tão belos lugares.

Umas ricas férias!

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Não é longe (para si ainda é mais perto) e é tão lindo, merece tanto ser conhecido...

Abraço, Francisco.