sexta-feira, março 15, 2019

Porque é que as nossas memórias não são de fiar






Há momentos marcantes na minha vida e penso que os guardo, com todos os pormenores, na minha memória. Poderia agora enumerar alguns mas são vários e, se me ponho e enunciá-los, fica isto longo demais.

Mas, por exemplo, não guardo qualquer ideia do primeiro dia de escola: nem da infantil, nem da primária, nem do liceu nem da faculdade -- momentos que, supostamente, são simbólicos e marcantes na vida das pessoas. Nada. Da ida dos meus filhos para a escola, dos primeiros dias, também não tenho ideia precisa até porque começaram a ir tão cedo e isso me custou tanto que a minha cabeça escondeu essa lembrança. Mas recordo, e recordo ainda com dor, o primeiro dia em que o meu filho foi para o infantário, teria uns sete ou oito meses, nem sei bem. Olhou para mim com o beicinho a tremer, a conter o choro. Tão bebé e mais corajoso que eu. Saí de lá de rastos, a chorar e, sempre que me lembro do rostinho dele, ainda sinto que as lágrimas me vêm aos olhos. Também me lembro do dia em que cheguei a casa com a minha filha, que tinha ido buscar à escolinha, e com ele que tinha ido buscar ao infantário. Ele vinha a chorar, incomodado. Aliás, frequentemente notava que ele vinha com olhos de choro. Diziam-me que tinha estado bem, que era impressão minha. Fui ver a fralda e tinha a mesma fralda que tinha levado de manhã. Fiquei desvairada. Peguei neles os dois e voltei lá a fumegar, furiosa. Desanquei aquela gente desalmada, ia em brasa, lembro-me de nem as deixar falar. E comuniquei que ele não ia voltar. E não voltou. Nem sei se lá chegou a estar um mês. Mas o que me custa pensar que não esteve bem enquanto lá esteve... Ainda hoje me faz sofrer pensar nisso.


A minha memória é selectiva, provavelmente como todas só que os critérios de selecção talvez sejam um bocado atípicos. 

Por vezes a minha mãe fala de momentos que acha que seriam de alguma forma marcantes para mim e eu, para seu espanto, não retive nem pitada. Em contrapartida, lembro-me de insignificâncias que a mim própria me espantam. 

No entanto, acontece-me por vezes lembrar-me de coisas mas com a sensação que perdi alguns pormenores, saber que já aqui falei disso e ficar intrigada: então quando escrevi lembrava-me tão bem e agora a coisa parece que ficou vaga...? E vou à procura, leio o que escrevi e tudo volta de novo. E, ao ler, evoco, então, pormenores que, na altura, ao escrever, me tinham escapado.


Fico, então, a pensar se as coisas se teriam passado exactamente assim como as recordo ou se, com o tempo, a imaginação compôs alguns hiatos. 

Mas isto para dizer que gostei muito de ver o vídeo que mais abaixo partilho convosco. Afinal essa sensação tem razão de ser e é mesmo assim. O nosso cérebro é mesmo a tal fronteira que ainda não conseguimos transpor completamente. Um mistério tão vasto, tão fora do nosso alcance.



Why your memories can't be trusted


Memory does not work like a video tape – it is not stored like a file just waiting to be retrieved. Instead, memories are formed in networks across the brain and every time they are recalled they can be subtly changed. So if these memories are changeable, how much should we trust them? With experts Dr Julia Shaw and Prof Elizabeth Loftus, the Guardian's Max Sanderson explores the mysterious world of human memory, how false memories can be implanted – and how this can be harnessed for good and ill


...............................................................

E permitam que vos convide a continuar a descer para irem saber quem é Sophie de Oliveira Barata.

.........................................................................

E thanks God it's friday. E que seja boa.

5 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Não é por acaso que uma terapia em condições é trabalho de anos.
Felizmente, lembro-me de muita coisa, até do dia em que atirei a última chucha janela fora, foi a última porque já tinham sido umas poucas defenestradas.

Essa situação do seu filho, que horror, com 8 meses sem um pingo de nada o dia inteiro. Ricos calhaus que esse infantário tinha ao serviço.

Um abraço.

PS: Em repúdio da malignidade "humana" que corrói o mundo e que por vezes se manifesta tremendamente onde menos se espera, Sophia pelo grande Chico Fanhais:

https://youtube.com/watch?v=o_L-l0A1C6c

Anónimo disse...

Há coisas (e memórias) estranhas. Ou estranhamente memorizadas. De facto. Por exemplo, há livros que nem o autor, nem as personagens, nem a trama, nem nada, não me lembro de nada. E podem ser romances bem volumosos e tê-los lido há pouco tempo. Outros que me ficam quase segundo a segundo de quanto neles se passa. O Estrangeiro do Camus, por exemplo, meu primeiro livro em francês, ainda tão novinha e que me ficou para sempre. Como senti tudo e percebi tudo - à exceção de achar que trottoir significava trator e pensar que havia pessoas em cima do trator a passar na rua. E memórias de quase todos os restaurantes onde os meus pais me levaram em criança, pouco mais que bebé. Uma façanha de que me orgulho. Mas também não me lembro dos "primeiros dias". Nem o da primária, nem o do liceu, vagamente o da faculdade. Parece que não houve um começo - e, no entanto, esses primeiros momentos coincidiram mais que uma vez com mudar de casa, mudar de amigos, mudar muito mais do que os livros da escola. Coisas assim, sem explicação.
Abraço
JV

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Se há coisa de que gosto é de ter aulas com psicólogos. Aprende-se imenso e, sobre nós próprios, aprende-se sempre surpreendentemente muito.

Sermos capazes de reconstruir as memórias que julgávamos esquecidas é um mistério. Daqueles mistérios que é bom que nunca descubramos completamente.

E obrigada pela cantata da paz, Francisco. Aprecio a sua gentileza.

Um belo sábado!

Um Jeito Manso disse...

Olá JV!

Como a compreendo. Comigo é também muito assim. Qual o critério com que a nossa cabeça arquiva umas coisas e mantém vivas outras é daqueles mistérios curiosos, não é? O que me lembro de andar a escolher sapatos quando era pequena e querer sapatos encarnados e não haver e não gostar de nenhuns outros. Lembro-me de uma sapataria em concreto, do senhor a calçar-me, da minha mãe a ver se o dedo batia à frente e de eu não gostar daqueles, só querer uns encarnados. Porque me lembro tão bem disto e não me lembro do primeiro dia da escola, do liceu, da faculdade? Ou lembro-me de estar sentada numa cadeira ao sol com um colega da faculdade e chegar uma outra e me ter pedido ao ouvido se lhe emprestava um teste e o colega ter ficado intrigado com o segredo. Porque me lembro de tal insignificância? Também não faço ideia.

E um belo sábado, bela d'Arc!

Isabel disse...

Tenho poucas memórias da escola primária, mas lembro-me apenas de uma coisa do 1º dia (acho que foi assim). Não fui feliz na escola e talvez por isso não me lembre, não sei. Mas tenho muitas memórias das brincadeiras no meu quintal,com irmãos e principalmente com a minha maior amiga da infância, que morava no andar de cima.

Há coisas que os meus irmãos às vezes contam, em que eu estive presente, e de que não me lembro, ou tenho memórias um pouco diferentes. Está presente também a nossa maneira de sentir.

É um tema interessante e quero ver o video, mas como é em inglês preciso de sossego para o ver seguido e com atenção. Mesmo assim não sei se vou perceber.

Beijinhos e um bom sábado:))