quarta-feira, fevereiro 06, 2019

Muito para além da estatística





Não sei se na estatística das nove mulheres assassinadas desde o início do ano (e ainda estamos no início) já consta a menina de dois anos e a sua avó. Se calhar, não. Se calhar agora já são onze. Não sei a que se deve este número. Os sociólogos ou os psicólogos sociais devem conseguir explicar.

Ouvi hoje que, a seguir ao período de natal, a violência se acentua pois, muitas vezes, o período festivo força encontros indesejados ou, pelo contrário, faz sentir sofridas ausências, reprime sentimentos ou aguça ressentimentos.


Mas, situações sazonais à parte, parece haver muito ódio recalcado, muito desenquadramento, muita banalização do mal. As telenovelas portuguesas em horário nobre estão cheias de gente de pistola em punho, gente a agredir-se, a vigarizar-se, a vingar-se, filhos roubados, mentiras. Os filmes com maiores audiências estão cheios de perseguições, tareias, assassinatos, armas, armas de toda a espécie. 

E depois há a pressão das redes sociais, o faz de conta, os amigos, os comentários permanentes, os likes, a exposição como forma de vida. E a raiva contida por debaixo da capa dos sorrisos e das selfies. Lê-se de vidas de 'esquemas' ou fantasias, ilusões, farsas. Ou vidas de 'seguranças' ou ex-seguranças, homens que tomam suplementos, que cultivam o físico, que são contratados para vigiarem o crime. Gente que vive nas margens da violência. Gente cujo corpo mal consegue suster as ondas de agressividade que parecem nascer do mais íntimo de si.

E depois é isto. O mal latente, comezinho, banal. A sociedade vai aceitando a violência gratuita, a pressão inaceitável e prepotente. Por exemplo: a greve dos enfermeiros, suspendendo cirurgias, podendo colocar em risco a vida das pessoas -- sendo que os doentes, indefesos, são as únicas vítimas -- é outro sinal da virulência que grassa nesta sociedade. Choca-me a tolerância com que se aceita que uma classe profissional atente contra a saúde pública da população, em especial da mais desfavorecida. É que estranhamente os enfermeiros não fazem greve nos hospitais privados quando razões de queixa também não lhes devem lá faltar. Tudo obscuro. Violento, incompreensível, inaceitável. Sementes de maldade que vão sendo espalhadas na sociedade.
Por cada mulher que morre vítima de violência doméstica, muitas outras continuam a sofrer sem coragem para denunciar a situação, com medo das consequências se ousar falar, com medo de represálias sobre os filhos. Medo, vergonha. Omissão. Até que um dia a coisa transborda. O dia em que o controlo falta. Onde vale tudo. Onde acontece o passo fatal.


Podia ser amor. Talvez tenha começado por ser amor. E o amor assume muitas formas e nem sempre tudo é bom no amor. Mas, por vezes, tudo se confunde: o real, o virtual, o social, o fatal. E depois há o momento em que o amor deixa de ser amor e passa a ser obsessão, pulsão, possessão.

E depois, por vezes, o sofrimento anónimo, silencioso e continuado, torna-se um número público.


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[As pinturas pertencem à colecção A Fortnight of Tears, um trabalho de Tracey Emin]. 

7 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A UJM fez o diagnóstico certeiro.

O grande mal da saúde mental nos dias de hoje reside nas estruturas limite, nomeadamente narcísicas, que apesar de se caracterizarem por alguma capacidade de apreender a realidade, esta quando se torna insuportável é imediatamente atacada, pois a construção identitária é parca e o perigo da desintegração psicótica é uma possibilidade forte. Está-se aquém da capacidade de amar, os outros cumprem uma função quase instrumental, por vezes são confundidos com partes da própria vida mental e existencial do sujeito. Este movimento pode ser tão poderoso que se um terceiro for mais suscetível à introjeção de questões alheias comporta-se de acordo com aquilo que lhe é projetado, por exemplo mulheres deprimidas, com forte componente de culpabilidade, que facilmente se consideram insuficientes ou mesmo más, ficam amarradas a um contínuum de quadros relacionais de agressão e submissão que, no fundo, entendem ser consequência das suas "falhas".

Um abraço.

Isabel disse...

Estas pessoas, que fazem estas coisas horríveis, podem ter todos os problemas que tiverem, mas acima de tudo são muito, muito más. São más e vingativas. Não lhes dá para fazer mal só a eles próprios, não, levam pela frente tudo o que podem, até uma criança inocente. Este homem suicidou-se, mas se não o tivesse feito, merecia a pena de morte.

Eu concordo com a UJM, quando diz que as novelas e os programas de horário nobre, têm muita violência. Violência e valores errados. A própria publicidade promove valores errados. E há uma impunidade muito grande perante coisas graves, como se viu ainda agora com aquela louca da "rede", que continua impune a dar aulas a pequeninos. Que valores pode transmitir uma louca daquelas?

Não sei se estou errada, mas penso assim.
Algumas (muitas) pessoas não têm limites, não têm respeito pelos outros, não sabem onde termina a sua liberdade e onde começa a dos outros.Neste aspecto, os políticos são os primeiros a não respeitar os cidadãos que representam.Não quero generalizar, mas é muito assim.

Às vezes fico deprimida, a ouvir as notícias.

Beijinhos e continuação de boa semana:))

bea disse...

É tudo tão triste e sempre do mesmo que nem me apetece dizer nada. Por tê-lo já dito de outras vezes. Que homens temos, senhor! Mas somos também nós, mulheres, quem os educa; há quem diga que Portugal vive numa sociedade matriarcal.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Como se combate isso? Não vai lá só com a censura social, não vai lá só com campanhas de sensibilização. Acho que tem que haver cadeiras de cidadania na escola, em todos os níveis, acho que tem que haver uma reflexão geral no caminho que a sociedade está a levar, centrada na partilha total de tudo, na vontade de agradar com muitos likes e muitos amigos. E na consequente situação simétrica, que refere, a da não aceitação da rejeição. O viver no limite emocional sem se saber viver com isso.

Gostei muito de ler o que escreveu. Sendo leiga, gosto de ler explicações bem fundamentadas.

Haja esperança num mundo melhor, não é...?

Abraço, Francisco.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Gente triste, gente fraca, gente doente. Talvez sejam maus, maldosos, maléficos, vingativos e isso tudo. Mas tudo isso conjugado é doença. Não sei se o remédio é apenas prender, se é tentar perceber para ver se se consegue prevenir. E enquanto não estão bons, devem ser afastados das suas vítimas. E as suas ameaças são para se levar a sério. Não se pode desvalorizar pois, quando se desvaloriza, pode vir tragédia.

Por isso, Isabel, quando leio ou ouço notícias tristes destas, não podendo fugir para o campo, entrego-me à risota. Ponho-me a ver o Charlot ou o Mr. Bean e sinto-me logo mais levezinha.

Beijinhos, Isabel, e dias felizes.

Um Jeito Manso disse...

Olá Bea,

Não devemos, nós mulheres, culpabilizar-nos dos actos monstruosos que alguns doentes, perturbados, desenquadrados praticam. Culpemos a vida de hoje, os empregos estranhos, mal pagos, a vida complicada, o stress, as redes sociais, os filmes, as novelas, os correios da manhã a explorarem o lado marginal da vida, a banalização do mal.

Tudo muito mau. Tantas mulheres mortas. O que elas sofreram no seu dia a dia, o medo que sofreram, o medo de represálias, o medo de ver os filhos sofrerem. Tenho muita pena. Causa-me preocupação.

Mas pouco mais posso fazer do que deixar aqui estes apontamentos na esperança de que se alguma Leitora estiver a passar por uma situação destas consiga a coragem para denunciar a situação e pedir protecção.

Abraço, Bea. Dias felizes.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Haja esperança, sem dúvida.

Muita formação sobre cidadania desde cedo.
Saúde Mental de qualidade e muita atenção ao desenvolvimento das crianças, com menos etiquetas diagnósticas espúrias e maior compreensão da vida mental per se, da história e função do "sintoma".
E, claro, meios de comunicação social mainstream menos embrutecedores, menos culto da fama e do exibicionismo, menos glamourização da violência e do crime, menos vale tudo afetivo-relacional (neste caso, talvez mais depressa vejamos um porco a andar de bicicleta).

Uma feliz 5f.