Ninguém merece. Por isso o digo. E digo e digo. A Isabel não concorda. Acha que é tudo gente lambona, que tem o que merece e que ganha bem que chegue para mais do que pagar qualquer coisa. Mas eu não. Eu acho que não é tudo farinha do mesmo saco. Há muita gentinha desqualificada mas há outros que não, que andam porque querem fazer o bem e há os que queriam e nem se achegam não só pela má fama como pelo mau jeito. Vejam eu. Sempre pensei: um dia vou para a política. Mas ainda não fui e acho que nunca irei. Como suportar ter que lidar de perto com ovelhas ranhosas, com cães com pulgas, com porquinhas da índia metidas a besta, com patarecos raivosos? Impossível. Pior: como andar de manhã à noite de salto alto, a dar troco a toda a hora, almoço de trabalho com simpatizantes ou adversários, reunião a toda hora? É que nem toda a gente é marcelo. Eu não. Aquilo ali monta em camioneta, vai ver descarrilamento, vai assistir a concerto, abrir congresso, abraçar bombeiro, dar beijinho a velha, fazer selfie com teenager, fazer vénia a rainha, piadinha com papa, comprar livro, servir sopa, mandar boca ao pé de jornalistas, beber vinho na tasca, despachar decreto, escrever discurso -- e tudo de seguida, sem intervalo para xixi ou cocó.
A minha vida é vidinha, coisa anónima, dispensável. Mas, esquecida da minha irrelevância, toda me entrego às responsabilidades: luto, exijo, protesto, aconselho, ajudo, defino, persigo, nego, aceito, rejeito. Reunião, call, video conf, almoço de trabalho, tudo em contínuo, tudo muito.
Ontem foi daqueles dias. Vendo por um prisma, dir-se-ia que glamour, rica vida. Por outro: só stress, só maçada, só canseira. Traçando a bissectriz: o de sempre mas em dose de cavalo.
Cheguei a casa tarde, cansada. Tinha dormido pouco e mal e o dia só tinha feito acumular mais estafa. Mas fomos fazer a nossa pequena caminhada e, a seguir, fomos ao supermercado para o salmão fumado, o queijo de cabra e outras miudezas. Pensei: o jantar há-de ser leve. O almoço tinha sido farto. No meio de um bando de homens esfomeados que devoraram quilos de carne, acabei por também comer carne de mais, legumes nenhuns. Mas, ao passar na banca do peixe, vi uma big cabeça de garoupa e deu-me um apetite a peixe cozido com todos. E assim foi. Que bela cabeçorra de peixe. Era metade e dessa metade só comemos metade, a outra metade congelei. Mas que boa. Com brócolos, feijão verde, cenoura e batata doce.
Mas com tudo só quase às nove da noite desci do salto alto. Mais de doze horas montada neles. Nesses momentos, que vontade tenho de tirar o soutien, tirar as meias, despir-me, lavar-me, apanhar o cabelo, jantar descansada.
Por isso digo. Há alguma coisa que pague uma vida descansada? Como não sentir admiração -- e espanto -- por aqueles que conseguem estar, de manhã à noite, sempre disponíveis, sempre sorridentes, sempre frescos, sempre com o verbo franco, sempre com o tino todo?
Pois eu, que não tenho um centésimo das pilhas do Marcelo, cheguei ao sofá e adormeci. Instantaneamente. Incapaz de acordar. Agora consegui abrir ligeiramente os olhos mas não dá para mais do que para desescrever isto.
Tinha ideia de falar daquela parvoíce pegada do manifesto dos coletes amarelos à portuguesa -- mas não sou capaz. Não é por aquilo ser uma coisa oca e parva que as coisas assim dão bom motivo de galhofa, é mesmo por estar sem pilhas. E outra coisa: tenho a impressão de que quando ando montada horas a fio em sapatinho de agulha, sem um minuto para devaneios ou simples e fugazes olhares pela janela, os neurónios entram em greve cirúrgica.
E não é ainda hoje que vou fotografar as minhas little árvores de natal. Nem sei se o farei pois, depois de contemplar extasiada as belíssimas decorações de natal num dos restaurantes especiais da capital, as minhas parecem-me inocentes demais.
E mais não digo porque não consigo. E por isso vos digo que vida difícil não é para todos. Por isso lhe digo, Isabel.
E o que dirá disto o Santa Claus?
3 comentários:
Sobre mulheres sem paciência, disse Brecht, "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento./ Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem." (naturalmente referindo-se aos saltos altos - tema de que muito cuidava, quiçá fruto de noites perdidas cantando Cher em festiva companhia).
Abraço
JV
Eh, eh, genial o comentário sobre o nosso Marcelo. Deixo-lhe isto, a título humorístico:
"O PR visitava uma exposição de colchas de Viana do Castelo. Pouco depois, um seu assessor informa-o de que tinha ruido um prédio numa aldeia próxima, em Algures-de-Baixo. De imediato, Marcelo foi até lá. Inteirou-se da situação, distribuiu uns tantos abraços, mostrou solidariedade para com os familiares que tinham perdido a velha avó, que fora incapaz de sair a tempo do prédio. Tomou de seguida um helicóptero e dirigiu-se a uma feira de enchidos numa outra região do País. Provou uns tantos, comprou outros, tirou selfies, com enchidos e pessoas ali à volta e partiu. Ainda tinha outros encontros. Ouvir os Bombeiros de Fagotes-de-Cima, que tinham perdido um colega num acidente, quando tentava salvar a vida de um invisual. Teceu-lhe elogios, tirou mais umas tantas selfies, abraçou parte da corporação e seguiu caminho. Foi inaugurar uma exposição canina, que se distinguia por possuir mais cães de raça portuguesa do que qualquer outra do género. Louvou os criadores portugueses, pegou num cachorro ao colo, tirou mais umas fotografias com a malta canina e humana e lá foi. Como ainda dispunha de algum tempo, antes de almoçar, foi visitar um Lar de idosos com Alzheimer, que, pese embora não fazerem a mínima ideia quem ele era, nem por isso lhes deixou palavras de ânimo e de conforto, não esquecendo as inevitáveis selfies. Uma idosa ainda tentou atirar-lhe um cinzeiro à cabeça, mas foi travada a tempo. Mal-agradecida! A caminho de um restaurante, quando seguia pela estrada, tendo assistido a um acidente, felizmente sem vítimas, mandou parar a viatura oficial e saiu para se inteirar da situação e deixar um abraço solidário. Ao almoço, face à excelente gastronomia que lhe foi servida, quis tirar umas selfies com os donos do restaurante, mais o peixe que lhe foi servido. E dali partiu para outros tantos encontros, ao todo mais 9, antes de chegar a casa, já passava das 21:00 horas. Às 03:37 da manhã acordava e como tivesse ouvido que se registara um acidente de bicicleta na A1 – uma coisa impensável, pois não são permitidos “veículos” daquele tipo circularem por ali, foi até lá para se informar da gravidade do mesmo e como sempre mostrar a sua solidariedade. Como o homem estive alcoolizado, foi difícil conseguir-se uma selfie. E por volta das 05:00 horas da manhã já estava sentado no seu gabinete em Belém, para recomeçar mais um dia agitado. Consta que um seu assessor sucumbiu, exausto. E, antes das 08:00 horas Marcelo iniciou o programa daquele dia. Por volta das 09:00 horas já estava a caminho de Francelos para visitar uma exposição de desenhos eróticos, seguindo-se outra de extintores de fogo e já não consigo lembrar-me de mais coisas. Meti férias! Ou melhor, meti baixa!"
P.Rufino
Olá UJM
fui primeiro ver o post anterior e vi que não me respondeu. Fico sempre um pouco triste quando me ignoram, nos blogues. Por isso faço questão de responder sempre a todos os comentários que me deixam, mesmo que às vezes demore um pouco a responder. E afinal, não só leu, como de certa forma responde aqui com este post!
E agora ocorre-me dizer-lhe que usar saltos altos ou ser político, são coisas opcionais. Quem as usa, pode deixá-las se e quando quiser. Vidas difíceis, não se consegue sair delas, não são opcionais e muitas são difíceis por culpa dos maus políticos que nos têm conduzido. Habituámo-nos à corrupção, aos compadrios e aos favores, maiores ou menores, como se fossem coisas normais, mas não são. E por exemplo, os "poucos" euros que estes políticos, há dias receberam apesar de não estarem onde deviam estar, para eles são trocos, mas para um velhinho pode ser a diferença entre comprar vitaminas, que não são comparticipadas e que deixam de comprar, apesar de lhes fazerem falta, porque não têm esses trocos (haveria muito mais exemplos...)
Vidas difíceis, conheço de perto algumas, que se podem multiplicar por milhares, por esse país fora.
A mãe que tem dois filhos e como não tem dinheiro para tirar a carta e comprar um carrito, anda todos os dias quilómetros para conseguir ir para o emprego, na zona industrial, e depois ir buscar os filhos à escola e à creche e levá-los a pé para casa, faça chuva ou faça sol.
Ou a mãe desempregada, com dois filhos pequenos, cujo marido morreu de forma muito muito trágica.
Ou um professor que trabalha há mais de vinte anos e ainda é contratado e todos os anos tem a vida em suspenso, sem saber se vai ser colocado, se vai para longe e se o dinheiro miserável que ganha (porque sendo contratado, nem que tenha 500 anos de serviço, é pago como se acabasse de entrar na carreira) dará para todas as despesas.
Ou o jovem com dois cursos (que não foram comprados) não consegue um trabalho compatível e se sujeita a um trabalho onde é explorado (como tantos jovens).
Ou a família com a vida mais ou menos orientada e de repente se vê confrontada com uma doença grave de um dos elementos da família.
Ou as pessoas que têm que se sujeitar à humilhação de viver da caridade de instituições.
Ou....
Tantas e tantas vidas bem difíceis, onde um pouquinho mais de dinheiro certo ao fim do mês faria muita diferença.
Dinheiro esse que poderia chegar se todas as trafulhices e falcatruas de gente com obrigação de cuidar do país, não existissem.
Por isso não acredito em políticos . Já acreditei.
E os polítios podem mudar de vida - não mudam porque não lhes convém. As pessoas com vidas realmente difíceis, infelizmente, não têm opção e apesar de tudo tentam levar a vida com honestidade e dignidade.
Não me leve a mal,mas é o que penso.
Não se resolveriam todos os problemas do mundo, mas se os políticos fossem honestos o país estaria mais saudável e feliz.
Fico revoltada de cada vez que oiço as notícias de mais uma desonestidade de um político, que acabam sempre impunes.
Nem todos podem ser metidos no mesmo saco? talvez não, mas poucos ficam de fora.
Um bom fim-de-semana para a UJM
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