quinta-feira, dezembro 13, 2018

Do além





As horas correm agitadas. Os dias quase desaparecem do calendário, da memória. As semanas passam sem se dar por elas. Estamos a dias do fim de mais um ano. Chegam-me problemas e pedem-me soluções. Estou numa reunião e a chegarem-me, por sms, pedidos de atenção. Ninguém se lembra que posso ficar saturada, que posso precisar de descanso, que posso agradecer que resolvam as coisas por mim. Ando no carro, à hora de almoço, à tarde, à noite, a fazer telefonemas. Se a viagem chegar, falo com a minha mãe ou com a minha filha. Com o meu filho é ele que liga, mais tarde.

Durante o dia forço-me a introduzir alguns momentos de descompressão. Falei neles no mail abaixo. São breves instantes. A hora de almoço por vezes consegue ser boa. Aproveito para tratar de assuntos inadiáveis ou lúdicos ainda que muito breves. Mas nem sempre o consigo. Hoje, por exemplo, queria fazer coisas e não consegui fazer nada e mal consegui almoçar, tanto o tempo desperdiçado para nada.

Depois dos jantares de natal, chegam agora os almoços. Pelo meio as reuniões, as maçadas, contratos que não se percebem, negociações complexas, gente enervada. 


Mas à noite, felizmente, consigo estar aqui sossegadinha. Agora, depois de ter escrito sobre banalidades e partilhado um vídeo muito ternurento, estive a fazer o tapete e a trocar sms com a minha filha. E estou a ouvir a chuva. Um som leve e bom.

E depois, de manhã, se não tiver telefonemas, consigo ir a ouvir boa música.

Na terça-feira, por exemplo, fui em estado de êxtase. Tinha dormido mal. Tinha acordado ainda de madrugada cheia de calor. Quis abrir o vidro mas o meu marido fechou-o pouco depois. Pus a roupa da cama para trás mas logo depois voltei a acordar já tapada: é ele que acha que posso ter frio. E eu cheia de calor. Além disso, lembrei-me de cláusulas que se calhar estavam omissas e outras que estavam pouco claras. Quando uma pessoa dá em labutar com contratos a meio da noite, dificilmente se desenreda a tempo de ainda pôr o sono em dia.


Portanto, ia ano carro sem atenção ou ilusão, apenas indo atrás dos carros da frente. Abstraio-me e vou. E, então, comecei a ouvir uma música do além. Só não parei o carro porque ali era impossível. Mas suspendi a respiração. Arrepiada, emocionada, ouvi -- sem saber o que estava a ouvir.

Em momentos assim só quero é que o trânsito me impeça de andar para que o tempo se suspenda e eu possa ser transportada pelo mero prazer da música.

Percebi que era o Maestro Artur Pinho Maria e o Coro Sinfónico Inês de Castro. Percebi que era a Missa para a Paz de Karl Jenkins. E fui ouvindo em puro estado de maravilhamento. Só ia pensando: de coisas assim há quem diga que, por trás de tudo isso, está um deus. Eu não digo porque não busco o que não conheço. Eu contento-me em poder testemunhar momentos assim, divinos. Para mim, a perfeição, a harmonia, a transcendência, o milagre estão em instantes breves e especiais como estes.

E concentrei-me para não me esquecer de aqui vos dar conta disso. E não me esqueci. Cá estou.

Não encontrei nenhum vídeo com o Coro Inês de Castro a interpretar estas peças mas partilho parte do que ouvi noutras interpretações. Espero que gostem tanto como eu.


E agora peço-vos: tentem ouvir em silêncio, melhor se em puro estado de recolhimento. 
É uma coisa do além.

Benedictus - Karl Jenkins



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Acho que as pinturas que escolhi para juntar ao texto não têm nada a ver com o conteúdo do post  mas talvez algum psicólogo que por aí esteja a aturar as minhas maluqueiras (😄) consiga descortinar alguma relação. São de Bela Silva.

 E queiram continuar a descer.

E uma quinta-feira feliz.

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