quinta-feira, novembro 08, 2018

Serpe.
As três águas do encanto.





Tenho ideia que seria um ano mais velha que eu. Muito discreta. Estudava o mesmo que eu mas nunca a via por lá. Era prima do primo dele. Eram muito amigos. Encontrava-a nesses encontros familiares, nunca na escola.

Quando dei aulas, encontrei-a na mesma escola. Sempre muito discreta. Eficiente, cumpridora, espírito rigoroso. Via-me a mim própria como uma diletante, turista acidental ocasionalmente professora. Ela não, como se professora desde a nascença.

Deixei de ser professora, ela continuou. Fisicamente igualmente discreta, sem nunca elevar a voz, sem extroversões ou, sequer, estados de alma à vista, era respeitada a ponto de vir a ter cargos de direcção. Sempre quase silenciosa mas sempre muito objectiva, sem uma palavra a mais ou a menos.

Depois teve uma menina e um menino. A menina era engraçada. Pequenina, alegre, bem disposta. O menino tenho ideia que mais calado. Mas a menina, era a mais nova das meninas e as mais crescidas achavam-lhe graça. A mãe, como sempre, discreta, sem alardear gracinhas da sua menina.

Fui perdendo o rasto. Diziam-me da menina, entretanto já adolescente: estuda teatro. E eu pensava: que engraçado, pequenina, alegre, bem comportadinha; e a gostar de teatro, quem diria? Preconceito meu. Como se para se ter vocação para o teatro se tivesse que ter nascido exuberante, palhacita, sem inibições ou freio na língua. 

Mais recentemente, eu comentava: nunca a vi na televisão, em telenovelas ou em reportagens sobre peças de teatro. Esclareceram-me: não, é contadora de histórias. Nem fui capaz de perguntar nada. Não sabia que havia isso de 'ser contador de histórias'. Pensei para mim, cheia de dúvidas: mas contará histórias a quem? E pagar-lhe-ão para isso? Intrigada, eu, e a confirmar: cada vez sei menos deste mundo.

No outro dia: sabes? lançou um livro de poesia. Eu ainda mais espantada. Ela? Poesia? Pelo sim, pelo não, perguntei qual o nome que aparecia. Conheço-a pelo petit non, nunca lhe soube o nome completo. Disseram-me. Não fazia ideia.

Hoje, com mais uns minutos e com vontade de entrar numa livraria, o meu marido disse-me: se não conseguires resistir, traz livros para os miúdos. Já era essa minha ideia. Tinha pensado: vou trazer um livro para os meninos, para mim não. Mas, depois de ter os livros para os meninos, mesmo sabendo que não ia trazer nenhum para mim, quis ir vê-los. Meia triste, deslizei entre estantes e escaparates. Folheei um ou outro, abstémica, forçando a distância. E, então, nem eu me lembrava já da conversa de dias antes, lá estava: 'Serpe - As três águas do encanto' de Ana Sofia Paiva com ilustrações de LigeiramenteCanhoto. Que engraçado: a menina pequenina já cresceu e publicou um livro a sério, e logo um de poesia. Folheei. Espantada. Tão bonito, tão diferente, tão original, tão delicado. Claro que o trouxe. Este não conta para contabilizar incumprimentos meus, este é especial. Trazê-lo não foi pecado, foi mera justiça, mera obrigatoriedade. 

Tenho estado a ler. Espantada. Quem poderia imaginar? Que distraída sou para nunca ter intuído. E que orgulho nela devem ter os pais. Que engraçada é a vida, sempre tão cheia de surpresas.

Transcrevo um pequeno excerto do livro que, até graficamente, é especial.


A tarde é hoje, anunciada.
Venho pressentindo há semanas esta solidão.
Já tinha visto as folhas, cheirado
a música ao silêncio do crepúsculo.
Venho pressentindo, sim.
E ao pressentimento poderia chamar
outono, como toda a gente,
melancolia ou apenas isso -- solidão.
Mas não.

A tarde é hoje, anunciada.
E chamo-lhe somente lassidão.

Lá vem, estendendo ossos
terrenos, muito plácidos,
num bocejo quente de areias.
Outono que se faz com teias
de leves carícias langorosas
de alguma erva adormecida e mole.

Outono: sequidão de um fole
embalando as horas açucenas.
Um breve piano tocado apenas
pelo calor sem sol -- só.
Brisa arrepiando notas ao silêncio,
a doer, devagar.
Serena idade.

Outono: reverso da saudade.
Outro nome para dizer adeus.


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Quando aquilo de saber que ela era 'contadora de histórias', fui ao YouTube. E cá está ela. Já não é menina, já é uma mulher. Bonita, interessante, expressiva. Contadora de histórias. Investigadora. Poeta. Noutro vídeo vejo que também canta, noutros vejo entrevistas. Talentosa. Mas, curioso, comedida e sóbria como a mãe. 

Aqui abaixo, contando um conto angolano. Quem diria...

[E, ao mesmo tempo, penso: parece que, não há muito, eu era a menina de quem as amigas da minha mãe diziam: cresceu, está uma mulher; mas mantém as mesmas feições, a mesma maneira de rir. Agora sou eu que me espanto de ver como as meninas de há pouco já são mulheres. E mulheres cheias de surpresas mas com as mesmas feições, os mesmos olhos cheios de vida]



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As fotografias foram feitas in heaven no último fim de semana. As três moldurinhas têm uns bordadinhos que fiz há mil amos, sem desenho, apenas pelo simples prazer de bordar.

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