quarta-feira, junho 13, 2018

Introspecções e outras visões





Mais um dia longe do mundo. Assim vão estes meus dias. Quando ia a sair, disse 'até amanhã' e umas que ainda lá ficaram olharam para mim a rir. Não percebi aquele sorriso. 'O que foi?' Entre sorrisos, elas explicaram, : 'Presume-se que amanhã não venha, não...? Amanhã é feriado'. Recentrei-me e sorri também, 'Ah, pois é... ' Tinha-me esquecido. Bolas, a desejar tanto ter tempo livre e, afinal, tinha-me esquecido. E, no entanto, Lisboa cheira a festas por todo o lado. Barraquinhas, esplanadas nos passeios, festões e balões, cheiro a sardinhas, turistas, turistas, turistas. E, apesar de tudo isso, tinha-me esquecido. Senti-me a mais palerma das palermas. E pensei: como será que me vêem? Despassarada? Aluada?


No outro dia aconselharam-me: devia prestar mais atenção à forma como as pessoas a vêem. Não quer dizer que a visão dos outros seja mais correcta do que a sua própria mas, se prestar atenção, terá uma outra visão e isso é sempre enriquecedor. Contestei: presto atenção. Sei ver quando alguém não está bem, interesso-me, as pessoas procuram-me para desabafar ou para se aconselhar. Disseram-me: quem a conhece melhor, sabe que é diferente da imagem que passa nas primeiras impressões mas não é isso, é prestar atenção à forma como as pessoas a olham. Não argumentei. Se é isso, então, é isso. Depois continuaram: não planifica a sua vida, parece não ter ambição. Confirmei. Mas foram mais longe: não é normal, na sua posição, ter tal desinteresse pela sua 'carreira'. Encolhi os ombros e disse: não vou mudar, isso é muito intrínseco em mim. Mostraram-me um gráfico. A seta estava no encarnado, perto do zero numa escala que ia até ao cem. Perguntaram: porquê? Pensei um pouco porque estava a pensar nisso pela primeira vez. Expliquei que a minha vida tem muitas parcelas e não quero que nenhuma delas devore as outras. Se me focasse demais numa das vertentes da minha vida, no trabalho, por exemplo, faltava espaço para as outras. E se me concentrasse muito em atingir um determinado objectivo, deixaria de estar alerta a factores inesperados que talvez seja melhores do que aquele que eu desejava atingir. Disseram: as suas opiniões são sustentadas, alicerçam a sua maneira de ser. Na sua óptica tem razão e, se calhar, faz sentido mas estas análises são feitas contrastando a maneira de ser de uma pessoa com a média de muitas outras pessoas que desempenham funções idênticas. Encolhi os ombros. Pensei: o que é que eu tenho a ver com isso? Como se adivinhando, disseram-me: não quer saber de nada disto, pois não? Confirmei: não quero. Concluíram: é uma pessoa desalinhada. Também me disseram que sou fora da caixa. E outras coisas. Quando cheguei a casa contei e mostrei o relatório. O meu marido riu-se e disse: 'E achas bem seres assim maluca?'. Respondi-lhe: 'Não sei se sou ou se deixo de ser, nem acho bem nem deixo de achar'. Ele rematou: 'É o que eu digo e agora está confirmado: és maluca'. Hoje, ao jantar, a propósito não sei do quê, gozou comigo, e, quando eu não percebi, explicou e, depois, concluiu que eu devia prestar atenção aos conselhos que recebo. E perguntou-me: 'Não reconheces que só um santo podia viver com uma pessoa tão atípica como tu?' Eu disse que ele deveria estar agradecido por lhe ter saído o brinde e não a fava. E ele riu-se e desvalorizou: qual brinde qual carapuça.


Hoje, à tarde, uma pessoa perguntou-me como tinha sido, o que me tinham dito. Omiti as coisas positivas e disse: que devo prestar atenção à forma como os outros me vêem. Ele sorriu. Continuei: que muitas vezes a imagem que passo é a de que me estou nas tintas para o que os outros pensam de mim. Ele riu. Perguntei: 'É?'. E ele, rindo: 'É'.


Lembro-me da minha mãe: 'Não chegues tarde, não faças isto, não faças aquilo, vê lá o que vão dizer de ti ou o que vão as tuas tias dizer ou as vizinhas reparam e comentam'. Ficava aborrecida com a maneira de ser da minha mãe por se preocupar com a opinião dos outros. Nunca liguei a tal coisa e achava que a minha mãe se menorizava por se condicionar para não despertar opiniões menos abonatórias. Dizia-lhe: 'Sou como sou, faço o que quero e estou-me nas tintas para as opiniões dos outros'. Era a grande, e creio que única, razão das minhas divergências com a minha mãe. Ainda hoje, se sabe que vou estar com alguém da família, olha para mim, examina-me, diz que me penteie, pergunta se não podia ter vestido nada melhor. Já não respondo. Mas, apesar de tudo, está bem melhor agora do que quando era mais nova.

Só agora aos oitenta e tal é que ela começou a libertar-se: no outro dia estava com umas calças justas em cor de pérola, uma blusa justinha às risquinhas e tinha um colete que eu lhe tinha dado e que ela não usava porque é fúcsia e justo e ela achava que não tinha idade para coisas daquelas. Agora gosta de se ver. Quando começou a ser ela mesma, parece que lhe tiraram vinte anos de cima.


No meio da outra tal conversa, disseram-ne: não guarda ressentimentos, pois não? Confirmei: zero. Ponho para trás das costas. E, como sou muito primária, mal ponho para trás das costas, esqueço-me. Às vezes até penso que devo ser anormal. Disseram: mas isso é bom. Há muita gente que faz terapia durante anos para conseguir ser assim. 

Mas sei lá. Nem sei nem quero saber. Mas um dia que tenha tempo, a ver se consigo ler o relatório todo. Tem para aí uma dúzia de folhas e parece-me muita folha para me desconstruir. Não sei se terei paciência para ler tanta coisa sobre matéria tão pouco sexy. A parte dos conselhos, então, deve ser uma seca.


O que me chateia no meio disto tudo é não ter tempo para fazer tudo o que quero. No congresso do PS não falaram que iam fazer com que as pessoas tivessem mais tempo para si próprias ou que as pessoas trabalhassem menos horas à medida que vão tendo mais anos de antiguidade? Tenho ideia que sim. Espero bem que sim. Por exemplo, se pudesse trabalhar para aí só umas seis horas por dia era bom. Podia ficar livre a meio da tarde para poder caminhar à beira rio, depois ler, quiçá tentar descobrir como se faz meditação, estar tranquila, sem pressas. 


Também já estive a fazer o euromilhões e desta vez até fiz o totoloto. Se fosse contemplada, ficava a viver só de rendimentos até atingir a idade da reforma. Claro que ocuparia parte do meu tempo a cortar mato, a desramar árvores, a varrer o chão e outras daquelas actividades que tanto me motivam e realizam. No fundo, conseguir isso é a minha verdadeira ambição. E, por muito que isto possa parecer uma maluqueira, juro que estou a falar a sério.

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Um bailado líndissimo para enlevar a alma

Orphée et Eurydice de Gluck / Ópera dansada por Pina Bausch



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Ilustrações de Toni Hamel

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2 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Já se pode comentar outra vez neste blog? Então está bem.

Só queria chamar a sua atenção para um outro vídeo da ópera "Orfeu e Eurídice", de Gluck, com coreografia de Pina Bausch. Esta é a minha peça musical preferida, a número 1 de entre todas, por razões muito pessoais. A Pina Bausch coreografou-a de modo sublime, acho eu. É a Dança dos Espíritos Sagrados: https://www.youtube.com/watch?v=oou2ywIbRxc.

Um Jeito Manso disse...

Olá Fernando!

Bom poder tê-lo aqui de novo. Sim, agora tenho tido os comentários abertos. Vamos ver se me aguento assim. Aborrece-me quando não consigo responder e durante a semana tenho tanto sono que não consigo. Acho que, se gosto de receber comentários, deveria depois retribuir. Mas, enfim, talvez me compreendam se eu não o fizer. Mas há pessoas que não compreendem e enviam, depois, comentários desagradáveis e custa-me também lê-los.

Já estou a ouvir a música do link que enviou (linda, linda) e, quando acabar de escrever, vou ver o bailado. As coreografias da Pina Bausch comovem-me.

Obrigada, Fernando. E continuo a ver sempre o seu A Matéria do Tempo de onde se sai sempre a saber mais.

Um abraço. Fiquei mesmo contente de o 'ler' por aqui!