Estou sentada, mal sentada, no sofá com o computador nos joelhos. Não dá jeito. Aqui ao lado tenho uma escrivaninha. Era de uma tia do meu marido de quem já aqui falei. O móvel em minha frente, sobre o qual está a televisão, também era dela. São móveis antigos, bonitos, de madeira sólida. Porque não vou eu sentar-me à escrivaninha, bem instalada? É uma coisa estranha, esta minha.
É tarde, devia ir deitar-me mas apetece-me estar aqui a escrever. Não sei porque escrevo. Porque se escreve?
Vi há pouco um vídeo. Diziam lá que há quem escreva como forma de combater a solidão. Acredito. Mas não é o meu caso. Embora precise de ter tempos só meus, penso que não é a isso que se chama solidão já que sou eu que os procuro. Penso que é o oposto: preciso de um tempo de recolhimento, só meu. Lembro-me de mim desde sempre a querer ter estes momentos. Adolescente, ficava a ler até às três ou quatro da manhã. Se ouvia algum som no quarto dos meus pais apagava, à pressa, o candeeiro. Zangavam-se comigo por ficar acordada até tão tarde. Sempre. Mesmo com os miúdos pequenos. Mal os apanhava a dormir, começava o meu tempo. Em vez de dormir, punha-me a ler, a escrever, a fazer tapetes, a pintar, o que fosse. E não é que durma mal. Pelo contrário: mal caio na cama, começo a dormir e, se ninguém me impedir, vou até de manhã, de seguida.
Mas, interrogava-me eu: escrevo porquê? Não sei, não sei mesmo. O que sei é que alimento a esperança de um dia encontrar um horário e um lugar em que possa dedicar-me à escrita com alguma dedicação a ver se sai coisa com substância.
Gosto quando as palavras me transportam para um mundo desconhecido, eu quase num êxtase, não querendo interromper-me, nem por um segundo, para que essa sensação hipnótica não se esvaia. Não acontece sempre. Acontece apenas quando ficciono ou treslouco, nem sei como definir esse estado.
Se um dia me desse ao trabalho de reler o que escrevi ao longo de todo este tempo, tenho a certeza que saberia distinguir o que foi escrito debaixo desse enlevo.
Mas, assim, aqui mal instalada, a esta hora da noite, não poderei escrever nada de jeito. Ora, porque não fui sentar-me na escrivaninha a seguir ao jantar em vez de ter estado a laurear até esta hora? Também não sei. Vivo enleada no meu próprio desconhecimento (desconhecimento esse que, a bem da minha inocência, tento preservar).
Quando ontem andava a varrer ao pé da capela, reparei que na parede onde está a mesa forrada a azulejos que está no recanto, lá ao fundo, ladeada de cedros, está um candeeiro e uma tomada. Lembrei-me: na altura, pensei que era um bom sítio. Pegaria no computador e ali, sossegada, poderia escrever tranquilamente, inclusivamente até já ser noite. Ora nunca para lá fui escrever, nem uma única vez. Não gosto de estar sozinha. Se está mais alguém em casa, obviamente não vou isolar-me. Se estou só com o meu marido, não gosto de me pôr a milhas. E imagina se, à noite, me ia pôr ali, tão longe de casa, sozinha, arriscando-me a ser surpreendida por um bicho mau ou correndo o risco de apanhar um susto do caraças se me sentisse observada, quiçá por uma coruja, quiçá por algum monstro também noctívago, perdido nas brumas. Puxa, vida. Nem pensar.
Tenho, pois, esta questão logística. Na volta, vai perder-se uma escritora só porque não consigo resolver esta equação: onde, quando?
Lá em baixo, ao pé da figueira gigante, há mais duas mesas também forradas a azulejos e, lembro-me agora, também com candeeiros e tomadas e, estupidamente, pela mesmíssima razão. Zero vezes lá escrevi.
No estúdio que fica do lado de lá do telheiro, debaixo da janela da sala pus a escrivaninha larga que era do quarto da minha filha quando adolescente. Imaginei que poderia ser bom estar ali a escrever, ouvindo os pássaros, deixando a luz entrar, sentindo o perfume do canteiro de alfazema ali por baixo. Zero vezes. Ah... não. Quando os miúdos cá ficaram no verão instalaram-se no estúdio e eu ficava a dormir no sofá-cama da sala e, então, mal eles adormeciam, eu começava a escrever. Mas era a escrever no blog, não conta.
Gostava mesmo era de escrever a sério, uma história do caneco.
Por exemplo, uma história sobre uma rapariga muito bonita que se deixou seduzir por um homem muito mais velho, com idade para ser avô dela. E, no fim, inesperadamente, a sedução a resultar num grande amor, os dois verdadeiramente apaixonados. Só que o velho seria um dos homens mais poderosos do país. E ninguém podia saber desse amor, o escândalo seria grande demais. E, então, viviam o seu romance às escondidas só que, pelas circunstâncias da sua vida, estavam sempre juntos, em público, à frente de toda a gente, sempre a terem que disfarçar.
E agora não conto mais porque os pormenores escabrosos seriam tantos, tantos, e os de muita ternura ainda mais e os trágicos ainda mais -- e tudo tão inconcebível que ninguém ia acreditar em mim. E, no entanto, seria uma história verdadeira.
Também gostaria de contar uma história de mistério passada num lugar extraordinário, uma fortaleza sobre o mar, com freiras silenciosas e algumas muito más, médicos reservados, escadas sombrias, corredores de chão de mármore a cheirar a sabão azul e branco, salões enormes com soalhos reluzentes a cheirar a cera de abelhas, labirintos, crianças a banharem-se junto às rochas, grandes ratazanas a atravessarem os pilares, junto ao mar, o senhor director a passear no terraço com o seu setter irlandês, vendo os navios a passarem ao largo, uma menina a escutar conversas de adultos.
Mas teria que ficcionar muito para a história ser credível. E, no entanto, seria também uma história verdadeira.
Mas, como disse, primeiro tenho que descobrir um lugar confortável onde possa instalar-me, tranquilamente, com tempo, a deixar que as palavras encontrem o seu caminho.
Até lá não passa disto. Temos pena.
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Fotografias feitas in heaven
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E queiram, agora, aceitar o meu convite e ir de passeio até a uma cidade muito bonita e saber da minha receita para uma boa cachola.