domingo, maio 27, 2018

Um rapaz selvagem encanta uma mulher da cidade





Quando foi o Butcher's Crossing adorei. Não era só a escrita, nem sei se era a história. Talvez não. Penso que foi, sobretudo, aquela escrita tão próxima da natureza, a terra a mudar aos longo das estações do ano.

Depois foi a descoberta das Oito Montanhas. A mesma coisa. Os elementos. O frio, as neves, o calor, o degelo, o céu que muda, as árvores que mudam em função da altitude, as pedras, os caminhos, o céu à noite, os sons da natureza.


A meio da semana, na fugida à livraria, novo livro de Paolo Cognetti, 'O rapaz selvagem'. Trouxe-o logo. Li-o hoje no carro, li à tarde antes de adormecer. Que bom. Autobiográfico. Nada de situações empolgantes, nada de enredos viciantes. Apenas a  descrição da vida na montanha. Paolo foi passar uns tempos sozinho, numa cabana alugada em plena montanha. A forma como passa os dias, os passeios, os animais que espreitam, os ruídos nocturnos, o amigo pastor. As páginas vão fluindo e eu presa a elas.


Encontro-me comigo quando leio uma escrita assim, tão próxima da natureza.

Hoje in heaven estive assim. Percorrendo devagar, maravilhada, o fulgor do renascimento. Depois das chuvas a terra fica ainda mais fértil. E tudo, tudo me encanta. As rochas e os verdes que as emolduram, as grutas tentadoras mas onde não quero entrar, os cheiros que perfumam o ar quente que faz vibrar os odores da terra, das árvores, do alecrim, do rosmannho, do funcho. A lagartixa que foge, os animais que não vejo mas cuja corrida ouço.


Estava à porta da sala. As portadas abertas, as portas de vidro abertas. Estava com a máquina fotográfica a tentar capturar a luz por entre os verdes, a luz nos muros, as sombras nas rochas. Então ouvi uma espécie de grito. Depois outro. Vinha do pinheiro grande. Um grito, outro grito. Depois um pássaro grande veio em voo urgente para pousar na azinheira ao pé de mim. Era cinzento com cores em volta do pescoço e asas em azul e verde. Gritou e logo um outro pássaro igual mergulhou também do pinheiro e veio ter com ele e logo o primeiro voltou a voar de volta ao pinheiro. Gritavam. Voo nupcial, talvez. Tudo tão rápido que não consegui registar.


O meu marido andou com a roçadora a cortar as silvas e o tojo que estão a despontar com todo o vigor e eu andei atrás dele com medo que corte os orégãos, os lírios e outras florzinhas do campo. Ele não quer que eu ande ali, prefere andar à vontade. Mas ando. Os óculos de plástico de protecção e a vontade dele em cortar a direito não me deixam descansada quando anda com aquela máquina terrível. Mas fica um cheiro bom a erva, a campo, a flores. Adoro. Já o disse muitas vezes: para mim é como se assistisse a milagres. Contemplo a natureza, venero a sua transformação, maravilho-me com a sua harmonia e perfeição.


Talvez por isso, ler palavras de alguém que sabe trazer à escrita estes sentimentos de profunda intimidade é um prazer.

Como disse, o livro chama-se 'O rapaz selvagem' e eu fico a pensar que, se calhar, também eu, que adoro andar sozinha e em silêncio nestes caminhos que são tão meus, sou uma rapariga selvagem. E, no entanto, grande parte da minha vida decorre entre avenidas lentas, sobrecarregadas e escritórios onde não entra o ar da rua nem se ouve os cantos dos pássaros.





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