segunda-feira, maio 28, 2018

Olha os meus olhos





Há temas sobre os quais não consigo formar ideia, muito menos defender, de forma militante, as minhas razões.

No caso da despenalização do aborto não tive dúvidas em defendê-lo apesar de ter dúvidas sobre se eu, alguma vez, teria sido capaz de o praticar (a menos que fosse por razões de inviabilidade do feto). Mas as minhas questões pessoais não me impediram nunca de ter dúvidas sobre a legitimidade da opção.

Já sobre a eutanásia não consigo formar opinião. Tendo assistido, de perto, nos últimos anos, a situações em que a morte apareceu como inevitável e, mesmo quase, como desejável, vivi casos em que apareceu mais cedo do que expectável -- causando tristeza e grande abalos emocionais mas, na verdade, poupando sofrimentos --, ou, surpreendentemente, se afastou quando parecia mais do que certa, deixando-nos estupefactos com a inacreditável capacidade de regeneração do corpo humano. 

Ainda no outro dia comentava com a minha mãe que morte boa só aquela em que, tendo a pessoa já vivido uma boa e longa vida e tido os seus momentos de realização e felicidade, cai para o lado sem dizer água vai. Pode ser um choque para quem cá fica mas, vendo bem as coisas, acabará por ser percebida como uma bênção.

Lembro-me, a propósito, de um ex-colega meu. Uma vez ligou-me uma colega minha a dar a inesperada notícia e na hora seguinte choveram telefonemas e sms, toda a gente em choque com a morte dele. Estava reformado, feliz da vida, e um certo dia, sem nada que o fizesse supor, sentou-se, baixou a cabeça, disse que se sentia cansado e com calor e, instantaneamente, caíu morto. 

Mas há os casos de lenta agonia ou grande sofrimento ou há os casos em que o corpo vai perdendo, uma a uma, cada uma das suas inesgotáveis capacidades. Talvez aí se justifique a eutanásia. Mas isso se a pessoa o quiser e o quiser de uma forma consistente. Claro que há o caso em que os órgãos entram em falência e em que, por todas as circunstâncias, qualquer esperança está fora de questão. No entanto, aí não se pode falar em eutanásia mas em ajudar a pessoa a sair o melhor possível da condição de moribunda.

Não sou dada a filosofias de bolso e muito menos me sinto habilitada a falar sobre o sentido da vida humana. Não sei se viver só se justifica quando existe uma função utilitária ou quando a pessoa tem autonomia sobre os seus actos ou quando quer estar viva. Não sei mesmo. E não sei porque não sei se esses estados são forçosamente definitivos.

Seja como for há casos em que ainda bem que o próprio ou os seus próximos não desistiram.

O caso que acabei de ler é impressionante. 

Trata-se de Rikke Schmidt Kjaergaard, a cientista dinamarquesa que aos 38 anos adoeceu, subitamente, com uma bactéria mortífera. Toda a gente julgou que ela ia morrer. Esteve em coma durante meses. Os médicos pensavam que, mesmo que sobrevivesse, talvez o cérebro estivesse incapaz e seria provável que perdesse os dedos das mãos, os dos pés, o nariz e parte do rosto.

E, no entanto, ao fim desses meses em que viveu aprisionada dentro de um corpo tomado pela estranheza e em que apenas podia comunicar piscando um olho, ela voltou a si. Fez fisioterapia, reaprendeu a viver e agora, apesar de, de facto, ter perdido os dedos das mãos (com excepção de um polegar), ela voltou a viver, a andar, a escrever, a sorrir.

Publicou um livro: The blink of an eye - how I died and strarted living 

Recomendo a leitura do artigo no The Guardian -- Look into my eyes: one woman’s journey from coma to consciousness -- de Joanna Moorhead do qual me limito a transcrever um excerto:
After a deadly bacterial infection, Rikke Schmidt Kjærgaard woke to find herself locked in her own body, with only one way to communicate – blinking: one for no, two for yes. Yet five months later she made a full recovery. Here she tells her remarkable story
(...) Rikke spent five months in hospital, and her book details the agonising path to an almost-full recovery (as well as losing her fingers, she is virtually blind in her left eye). There is the day she utters her first, and very apt, word: “weird”; the days she becomes paranoid and delirious, a common occurrence in coma patients; the terrifying times when she is hauled, in agony, into an upright position in physiotherapy sessions. And then, as she gradually regains her strength and autonomy, there are some incredible milestones: the day she leaves the hospital to first buy the ingredients for, and then cook, a birthday cake for Peter; the day she takes Daniel to his school and climbs the mountain of steps to his classroom, with him holding her hand, willing her to do it, and glowing with pride when she reaches the top. (...)
A partir de agora vai dedicar a sua vida a lutar para que um doente tenha voz mesmo quando a não tem. Em coma, ela ouvia o seu corajoso marido a contar vezes sem conta aos diferentes médicos e enfermeiros qual a condição da mulher, os tratamentos que tinha feito, a sua evolução. Quando 'acordou' Rikke pensou que deveria haver uma melhor forma de enfrentar a situação.
(..) She and Peter were acutely aware of how difficult it had been, even as scientists, to communicate effectively with the hospital staff looking after her. “You experience a total loss of control; and in my situation, being a patient was really difficult. I met so many different doctors and every time Peter had to tell them over and over what had happened to me. So when I got better I said to him: ‘There has to be a better way to do this.’”(...)
“It’s all about being there for people, about never underestimating the difference it can make to simply be with someone in their difficulty, to be beside them, to not leave them. I want to give people hope. It’s what got me through and it’s why I’m where I am now.” 
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A fotografia lá em cima mostra a lava do vulcão Kilauea no Havai

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