Encontro beleza na decadência. Não sei dizer se em todas as formas de decadência ou apenas em algumas. Penso que, em especial, encontro beleza nas várias camadas de vida que, ao longo dos tempos, se vão sobrepondo, deixando marcas, cicatrizes, vestígios. Pode ser um tronco de uma árvore sem vida, um corpo de mulher que guarda mil histórias, pode ser um edifício esventrado cujas paredes mantêm palavras, desenhos, cores. Memórias impressas, suavizadas pelo tempo.
De manhã, passeei pela beira do rio, lá onde a decadência tomou conta da paisagem. Gosto muito deste lugar e temo o dia em que o rolo destruidor do progresso arrase estas velhas casas esventradas, o que sobra destas paredes mil vezes palco de declarações de amor, de gritos de revolta, de sonhos e devaneios.
Sei que um dia tudo aqui será desfeito, anulado, o pó e as cinzas levados para bem longe. Em vez destes armazéns e casas onde, em tempos, houve trabalho e famílias e agora há apenas ruínas, pedras, mato e gatos vadios, nascerão hotéis e apartamentos de luxo ao alcance de muito poucos. Haverá passadiços sobre o rio, haverá superfícies espelhadas, talvez nasçam arbustos floridos, talvez esculturas. Respirar-se-á civilização.
E quem ali habitar poderá contemplar o elegante deslizar dos veleiros, a cor mutante das águas, a graça do casario que sobe da margem para as colinas, o voo das gaivotas, os cargueiros e os enormes cruzeiros que transportam turistas de país em país.
Não sei se alguém saberá que ali, por onde tenho andado uma e outra e outra vez, houve, em tempos, casas sem telhado, buracos em vez de janelas ou portas, ervas sem dono, gatos silenciosos que se esgueiram por entre os destroços.
Vou andando e espreitando. Há risco de derrocada. As vigas caíram, os pilares cederam. Num dos edifícios deve ter havido um incêndio. As madeiras estão queimadas, entulho por todo o lado. Do lado de fora, os bonecos pintados riem, ignorando a desolação que habita o interior.
E, no entanto, em tudo isto eu encontro beleza.
Espreito. Quero ver o que se esconde por detrás das ruínas, quero imaginar o que foi em tempos aquele lugar.
Uma escada que não leva a lado nenhum e em cujos degraus cresce erva. O sol torna alegre aquele espaço que cheira a maresia e que está impregnado de memórias. Quem, em tempos, por aqui andou não imaginou no que isto se haveria de transformar.
Espreito, aventuro-me. Passam turistas que vão para os restaurantes. Admiram-se com a beleza da paisagem, Lisboa tão linda ali tão perto, os cacilheiros, os pescadores da beira de água, a degradação das casas. E eu gosto de ouvir tantas línguas, de ver tanta gente diferente, gosto da proximidade da água. Gosto de pensar que era bom se uma vez pudesse descer as escadas das muralhas e entrar na água. Gosto de pensar que um dia vou tentar ser pescadora e que, por sorte de marinheiro de primeira água, talvez pesque um peixe grande, brilhante, ou um tesouro. Talvez um dia deite a rede ao mar e recolha um misterioso tesouro.
Espreito. Aproximo-me. As cores dos desenhos são vibrantes. Chega a ser engraçado ver como ficam alegres as paredes assim, com figuras coloridas, desenhos interrompidos pela erosão.
O reboco vai caindo, os tijolos estão à vista, os tectos caíram, as telhas caíram. Espreito e vejo o céu. O sol entra nas casas, a luz desenha novas figuras. Renovam-se assim as ruínas, rejuvenescem com o brilho da luz, com as cores do acaso, com o olhar curioso de quem as olha. É tão bela a decadência.
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As fotografias foram feitas no Ginjal
Acompanha-me no passeio Max Richter com Lamentation For a Lost Life
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Permitam que vos convide a descer um pouco mais para poderem conhecer a extraordinária história de Rikke Schmidt Kjaergaard