segunda-feira, abril 02, 2018

Quando tudo se esfuma





Fiquei a pensar.

Conheci uma mulher. Quando a conheci já não era nova mas era ainda uma mulher interessante, com o seu quê de irreverência que era patente no que dizia, na forma como se vestia, no arrojado corte de cabelo, na maquilhagem atrevida. Era uma mulher moderna. Era também uma digna representante da nossa aristocracia e, como os irmãos, tinha herdado propriedades e outros bens. No entanto, o lado superior, conservador e discretamente paroquial que tantas vezes se observa nestas famílias não existia nela. Sempre prezara a vida solta, sem preconceitos, sem obrigações. Viveu amores e paixões, conheceu maridos e amantes, viajou por onde quis, albergou amigos, arrivistas e vasta fauna. Sem apegos materiais, foi-se desfazendo do que herdara.

Pela actividade que, entretanto, ia desempenhando foi reconhecida pela sociedade; mas não era assídua nem esforçada e essa mesma sociedade foi-se esquecendo dela. Sem mágoa e com compreensão, sempre aceitou tudo o que lhe aconteceu.

Quando a conheci, apesar de se ver nela ainda o porte que em tempos teria sido altivo e apesar de as maneiras denunciarem a sua ascendência nobre, sabia-a já a viver com alguma dificuldade.


Depois de ter vivido em palácios, de ter convivido com reis e princesas e de ter à disposição uma vasta equipa de empregados, era, naquela altura, uma mulher que não tinha acautelado os seus anos de madura idade. Nunca tinha feito descontos para nada pelo que vivia totalmente desprotegida. 

Fui sabendo das preocupações que a família sentia e de como se uniram para a ajudar. Mas, de uma forma ou de outra, para todos os descendentes das anteriores e prósperas gerações estes também já eram tempos bem distantes do fausto que conheceram noutras épocas pelo que para nenhum deles a situação foi fácil.

Por fim, vivia sozinha numa casa mal cuidada e ela própria também pouco cuidada. Quando alguém falava dela, percebia-se sempre uma grande tristeza. Das casas que tinha habitado nada tinha sobrado.


Como ontem referi, estou a ler a conta-gotas 'O Leopardo' -- e que prazer a sua leitura me tem trazido.

Sem querer, vou evocando memórias recentes, situações em que famílias da aristocracia, numerosas e prósperas, aos poucos, à medida que o património se vai dividindo, se vêem confrontadas com dificuldades de vária ordem: frequentemente tentam manter a altivez, a atitude superior, como se acreditassem ainda pertencer a uma casta privilegiada mas a força das circunstâncias obriga-as a descer ao mundo terreno, a lidar com as minudências do dia a dia, a ter que conviver com aqueles que antes viam como seres de uma casta inferior.

Referi há pouco aquela casa enorme e ao abandono que vimos à beira da praia. Imagino que, dentro, conserve ainda vestígios da grandeza que, em tempos, deve ter vivido. Mas, por fora, os sinais de decadência mostram bem como não há fortunas perenes nem certezas adquiridas. A vida, a sorte, as memórias, os afectos, tudo, tudo tem que ser cuidado, acarinhado pois um dia tudo pode esfumar-se. É um lugar comum, isto, mas é tão verdade. É que, quando tudo se esvai, não há paredes que sustenham o declínio que, por vezes, desafortunadamente assolam algumas vidas.


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As fotografias foram feitas este domingo, durante o passeio que abaixo descrevo.

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