Sobre a terra avermelhada as plantas cresciam em exuberante desordem, as flores despontavam onde Deus queria e as sebes de murta pareciam ter sido feitas mais para impedir do que para guiar os passos. Ao fundo uma Flora salpicada de líquen amarelo e negro exibia resignada os seus atractivos mais do que seculares; de cada lado um banco com almofadas enroladas e bordadas, do mesmo mármore cinzento, e a um canto o ouro de uma acácia com a sua alegria intempestiva. De cada torrão parecia germinar um desejo de beleza logo extinto pela indolência.
Mas o jardim, comprimido e mortificado entre os seus limites, exalava perfumes untuosos, carnais e levemente pútridos como os líquidos aromáticos destilados pelas relíquias de certas santas; os cravos cobriam com o seu aroma apimentado o aroma protocolar das rosas e o aroma oleoso das magnólias amodorradas pelos cantos; e lá bem no fundo notava-se ainda o cheiro a hortelã misturado ao aroma infantil da acácia e ao cheiro a compota da murta, e do outro lado do muro o pomar de citrinos derramava sobre o jardim o cheiro a alcova das primeiras flores de laranjeira.
Era um jardim para cegos: a visão era constantemente ofendida mas o olfacto podia sentir um prazer intenso embora não delicado. As rosas Paul Neyron cujas plantas ele próprio comprara em Paris tinham degenerado: estimuladas primeiro e depois cansadas pelos sucos vigorosos e indolentes da terra siciliana, queimadas pelos Julhos apocalípticos, tinham-se transformado numa espécie de couves cor de carne, obscenas, que exalavam um aroma denso e quase repugnante que nenhum criador francês ousaria esperar. O Príncipe levou uma delas ao nariz e pareceu-lhe que estava a cheirar a coxa de uma bailarina da Ópera.
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Sentado num banco, contemplava inerte as devastações que Bendicò ia fazando nos canteiros; de vez em quando o cão erguia para ele os olhos inocentes como se quisesse ser elogiado pelo trabalho feito: catorze cravos destruídos, meia sebe arrancada, um rego obstruído. Parecia mesmo um cristão. "Bendicò, anda cá.". E o animal acorria, pousava-lhe na mão o focinho cheio de terra, ansioso por lhe demonstrar que a absurda interrupção do seu belo trabalho tinha sido perdoada.
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O texto acima é um excerto de 'O Leopardo' de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Ed. Presença, que, segundo alguém que conhece várias edições, é a melhor delas (e que, por isso, ma ofereceu)
As fotografias foram feitas este domingo in heaven onde a Primavera desponta em toda a sua radiosa beleza
O vídeo abaixo é também um excerto do filme Il gattopardo, realização de Luchino Visconti com Burt Lencaster como o Príncipe de Salina
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