Penso no repugnante striptease espiritual que se dissemina cada vez mais. Aos amantes e ex-amantes ansiosos por exibir na televisão os seus azedumes, rebaixando a cama ao rés-do-chão dos arrufos e coscuvilhices, às mães cujo coração nas mãos ocupa todo o ecrã, às legiões que contam no Facebook a sua intimidade -- tão interessante como a sua roupa íntima -- a pessoas que não conhecem de parte nenhuma e que se tornam ainda mais distantes depois da troca, ou então que difundem obscenamente intimidades alheias roubadas.
Também o coração, escreve Flaubert, tem as suas latrinas, mas não há razão para que devamos espiar estas latrinas através do buraco da fechadura, convidando milhões de outras pessoas a fazer o mesmo, nem para abrir a porta da própria latrina na precisa altura em que se vai evacuar, convidando os outros a observar.
Mas penso também em nós, que escrevemos e que não só publicamos, mas também andamos por aí a pôr o nosso coração talvez não tanto a nu, mas por certo sob os holofotes, lendo em voz alta as nossas páginas, esperando por multidões de ouvintes, contando como e por que razão enchemos de palavras aquelas folhas e que nobres, sofridas ou trangressivas paixões estão por trás dessas folhas impressas. Naturalmente esperamos que seja admirada aquela parte da nossa escuridão que é posta à vista, sem nos apercebermos de que dessa forma, como escreve Borges numa memorável página, nos esvaziamos, deixando que nos levem tudo e esse espaço escuro arrisca-se a ficar vazio.
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Tal como os dois posts abaixo -- Recrutas do destino e Sentir tudo aquilo de que se sente falta -- também o texto acima é um excerto de Instantâneos de Claudio Magris
As fotografias são de Sheila Metzner da série 'Celebridades'
Elvis Costello interpreta Days
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