quem fabrica um poema curto morrerá muito mais tarde
só depois de estar maduro
Num único dia saio de casa, percorro a beira do rio, a cidade, outra cidade, volto a minha casa. Num lugar chove copiosamente, noutro há ventania, a seguir aflora o sol. Em casa há o conforto da família. Fecha-se o ciclo.
E observo como o tempo actua no corpo dos homens.
Os meus pais.
Ao lado do meu pai, o avô de um ex-aluno da minha mãe. A filha desse avô que a minha mãe reconheceu apesar de terem passado mais de trinta anos. O seu ex-aluno, agora jornalista com programa na televisão, fala com adoração dessa sua professora, conta a mãe. A minha mãe recorda-o. Sempre gostou de escrever, diz. Depois a mulher fala do pai: 'Alzheimer. Rápido. Intenso. Tudo a falhar.'. Depois acrescenta: 'E a minha mãe também. Mais progressivo. Tem momentos em que ainda me conhece'. Está cansada. Quase sufocada. A minha mãe diz que a percebe. Eu não digo nada.
Ao fundo, um homem está sentado num cadeirão e tem tubos de oxigénio. Em frente, o que deve ser a filha, mulher talvez um pouco mais nova que eu. Nenhum dos dois fala. Comento com a minha mãe: 'Destes três já nenhum sabe conversar'. Quando a mulher sai, o homem espreita para confirmar que ela saíu, depois, lesto, levanta-se e, com segurança, começa a separar os tubos, tira-os do nariz, e enrola-os cuidadosamente. A seguir coloca-os no bolso. Chamamos a enfermeira. Ela zanga-se. Ele calmamente diz que aquilo é dele, que faz o que quer. A conversa é divertida, parece uma rábula cómica. Ela diz que é dela, que lhe dê os tubos. Ele duvida: 'É...?'. Ela confirma. 'Claro que é'. Ele pergunta: 'Sim...? Pagou...?'. Ela ri-se. Diz que sim. A custo arranca-lhos. Volta a colocá-los. Mal ela vira costas, ele faz o mesmo e, rapidamente, avança para a porta, diz que se vai embora.
Pergunto à enfermeira se precisa de ajuda. Diz-me ela, sorrindo: 'Deixe... Não é fácil... Demência'
Penso que ali é o fim da linha. Penso mas não digo. Se há coisa que tenho aprendido nestes últimos anos é que não se sabe nada.
Dali sigo para casa. Estou com os mais pequenos, com os pais dos mais pequenos. Os meus amores. Na minha sala brincam as cinco crianças. Jogam à bola, praticam judo, fazem ginástica, riem. O mais crescido segura o mais pequeno. Riem um para o outro.
Os mais crescidos observam, riem, conversam. O bebé ciranda, anda à descoberta, começa a impor a sua vontade. Depois, à volta da grande mesa, come-se, conversa-se, partilha-se.
Quando saem, dedico-me às tarefas domésticas. Depois venho ver as fotografias feitas no dia. O Ginjal, o rio, a chuva, os meninos, as brincadeiras, os sorrisos. Sorrio vendo-os.
Na televisão há o festival da canção, os óscares, os futebóis, as eleições em Itália, o mau tempo. Distraí-me a escrever. Quando volto à 1, já começou um filme. Fui agora ver ao DN quem foi que ganhou. E agora fui ao YouTube para ouvir. A miúda, Cláudia Pascoal, tem carisma. Mas canta a canção com ar de sofrimento. Não sei se a letra o justifica mas não me apetece prestar atenção.
Está a começar uma nova semana. Tomara que seja boa. Não precisa de vir com sol. A chuva não faz mal, também é boa. Na sua diversidade e apesar de tudo, a vida é uma coisa boa.
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Três fotografias foram feitas no Ginjal. A outra, na sala.
Fernando Alves diz Quem fabrica um peixe fabrica duas ondas de Herberto Helder num vídeo do Cine Povero
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E queiram continuar de passeio pelo Ginjal, um dos lugares mágicos da minha vida.
Aí poderão ver a gaivota que levou a melhor em relação ao pescador.
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