O homem alto, já com alguma idade, cabelo branco, sobretudo de bom corte, cumprimenta-me sorridente e faz-me uma pergunta. Retribuo o cumprimento e respondo. Mas fico incomodada: não consigo lembrar-me de quem é. Sei que o conheço mas não me lembro de onde. De cabeça, visito colegas mais velhos que se tenham reformado faz tempo, penso num, noutro, e nenhum é ele. As costas ligeiramente curvadas. O tom de voz conhecido. Conheço-o e não faço ideia de onde. Apenas quando começo a despir-me, percebo quem é. Nada a ver com o meu mundo do trabalho. Mas mais velho do que eu pensava. Concluo aquilo que estou farta de saber: na velhice, na doença ou em qualquer momento de fragilidade somos todos iguais.
Hoje, eu no meu gabinete de fisioterapia -- deitada na marquesa, depois do laser e antes da tareia brutal do terapeuta, enquanto se processava a ionização -- a ouvir a conversa do gabinete ao lado. Uma voz de homem recorda peripécias. A técnica vai respondendo ou fazendo pequenas perguntas para alimentar a conversa e ele fala, ri. Começo, então, a perceber que é a mesma voz. Presto mais atenção. Dou por mim a sorrir à medida que ele conta lembranças com a voz sorridente.
Depois percebo que está a levantar-se, a vestir-se. A técnica despede-se e fica no corredor. Prepara-se para vir ocupar-se de mim. Ele continua a conversar. Ela deita a mão à cortina que isola o compartimento em que estou mas ele continua, a conversa parece não querer extinguir-se. Ela arrisca um passo na minha direcção, a mão ainda segurando o cortinado. Ele continua, bem disposto, a história vai-se desenrolando. Ela, do interior do meu compartimento, espreita e presta-lhe atenção mas notoriamente com alguma impaciência. Tem que me despachar para se ir embora. Mora longe, é tarde, chove e o percurso ainda é longo. Então, com bons modos, fingindo estar interessada na conversa, arranja maneira de atalhar e deseja-lhe as melhoras.
Ele percebe. Agradece. Responde que se sente melhor, que já é mais medo. Ela diz que é natural, que vai aos poucos, que tem que perder o medo e pôr-se bom. Pela voz, percebo que ele sorri. 'Para as cantorias...'. Ela espreita e diz: 'Claro!'. Despedem-se.
Sinto uma certa ternura por este homem que nunca antes tal me suscitara. A noção da fragilidade da vida está sempre muito presente em mim e às vezes ainda mais.
O primeiro dia, aquele em que não o reconheci, no dia em que estava eu atormentada com um susto, em que toda a manhã tinha sido passada no hospital a acompanhar quem fazia exames.
Hoje, o dia em que soube os primeiros resultados e em que me concedo o direito a sentir-me um pouco aliviada.
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Auto-retratos de Jorge Molder
Leonard Cohen interpreta It Seemed the Better Way
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