terça-feira, janeiro 23, 2018

Júlia Pinheiro e Conceição Lino sobre a SuperNanny: o grau zero da dignidade profissional em televisão


Não vi nem verei nenhum episódio do programa Supernanny. Os excertos publicitários e o formato anunciado bastaram-me para me sentir incomodada e, não sendo eu masoquista, sempre que posso não desperdiço o meu tempo com lixo. 

O tema do mau comportamento e da má educação das crianças e da incapacidade dos pais em lidar com a situação parece-me assunto a ser analisado caso a caso, com reserva e pudor. De resto, tenho a noção de que, na maior parte das vezes, o problema da má atitude de algumas crianças está, sobretudo, nos pais e na sua disfuncionalidade. E quando vejo desfocar a questão, responsabilizando as crianças, tratando-as como deficientes, delinquentes ou patologicamente problemáticas, sinto-me chocada e desconfortável.
No outro dia almocei ao lado de um casal que estava com o filho, um rapazinho de uns três ou quatro anos. O miúdo fazia uma birra incómoda. Mas o que me incomodou mais foi a raiva mal disfarçada entre os pais -- a mulher, num tom furibundo e ansioso, não parava de interrogar e pressionar o marido e este já não suportava os remoques permanentes da mulher e já falava num tom demasiado agressivo para o meu gosto. A criança berrava desalmadamente e os pais, em vez de a abraçarem, de tentarem perceber o que se passava, agrediam-se verbal e comportamentalmente um ao outro. Estive a ponto de me meter naquele mal disfarçado conflito, recomendando que se acalmassem e prestassem atenção à criança
Lembro-me também de que, quando estive a fazer uma pós graduação numa universidade privada, nos ter sido publicitado um curso pós-laboral para ensinar os pais com pouco tempo para os filhos a lidarem com a situação. O nosso curso era um curso de gestão dita avançada e todos os que ali estavam eram executivos que provavelmente encaixariam no público alvo. Muitos acharam o curso interessantíssimo e inscreveram-se logo. Eu disse alto e bom som que o achava pura e simplesmente ridículo: se o problema era terem pouco tempo para os filhos, o melhor seria irem mais cedo para casa para estarem com eles em vez de arranjarem pretextos para os deixarem a criar-se sozinhos urdindo, ainda por cima, teorias de cão de caça para lidarem com os seus problemas.
Mas cada família saberá de si e há circunstâncias ou personalidades em que a coisa pode mesmo ser complicada. E admito que casos existam em que algum apoio externo seja necessário.

Agora o que não lembra ao diabo é meter uma televisão dentro de casa e expor ao público os problemas que ali se vivem. 

Mais. Expor crianças seja em que situação for -- sejam pais que humilham os filhos em público, os expoem em revistas, redes sociais ou na televisão -- parece-me sempre mau. Cada um tem direito à sua privacidade, mesmo as crianças. Choca-me que adultos de amanhã estejam hoje, enquanto crianças, a ser expostos pelos pais.

Mas, diga-se em abono da verdade, que não é só isto que me choca: muito do que se passa nesta sociedade inculta, estúpida, imediatista e superficial me choca. 

A comunicação social e essa massa informe que se junta nas redes sociais subsitui o conhecimento e anula a autoridade de quem estuda e sabe do que fala. Ouço com pasmo repetirem-se barbaridades com total convicção apenas porque se leu no facebook, se ouviu a um comentador mentecapto ou apenas porque circula por aí. Uma mãe por mais palerma que seja vai para o facebook dizer parvoíces e há uma chusma de outras mães palermas que acham muita graça e repetem as parvoíces umas das outras. E as parvoíces, por se encontrarem em letra de forma e terem muitos likes, passam a fazer escola. Este é o caldo social e cultural em que germinam programas impensáveis como este Supernanny.

Júlia Pinheiro e Conceição Lino,
as chocarreiras
que se acham no direito de se armar em
justiceiras e pesporrentes.
marimbando-se de alto para as crianças.
Querem é audiências.

Por mero acaso, ao jantar, demos com um debate da SIC sobre o programa Supernanny que, dos excertos que agora ali mostraram, me parece, de facto, roçar a abjecção. E confesso: ver a prepotência, o ar de superioridade alarve, o quero-posso-e-mando, a pesporrência e a total leviandade da Júlia Pinheiro e da Conceição Lino a defenderem aquele formato, a desafiarem  Dulce Rocha, do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e Rosário Farmhouse, da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens ( CNPDPCJ) deixou-me chocada. Mais: revoltada.


Ouviram a opinião fundamentada de duas pessoas que sabem do que falam como se estivessem a ouvir a opinião de duas vulgares transeuntes a quem tenham posto o microfone à frente da boa. Com ar de dúvida, por vezes até trocista, Júlia Pinheiro e Conceição Lino desdenharam de toda a argumentação técnica e séria que elas foram carreando para a discussão, contraponto vulgaridades e atoardas, ora com ar arrogante, ora com ar de gozo.

Chocante. E tanto mais chocante quanto se está a falar de crianças.

Júlia Pinheiro e Conceição Lino
a dupla sensacionalista
para quem vale tudo,
 desde explorar o luto e a dor alheia
até aos problemas de crianças indefesas

Depois daquilo a que assisti a única coisa que me ocorre é o seguinte: não é possível ter pessoas como Júlia Pinheiro e Conceição Lino em lugares de responsabilidade na Comunicação Social. Não é possível. 

Podem com os seus desmandos, histerias, manipulações ou exploração alarve das emoções alheias conquistar picos de audiências. Acredito que sim. Mas não vale tudo. Não vale tudo.
Tivesse eu funções de responsabilidade na SIC e de tudo faria para que pessoas que revelaram um tal desprezo pela dignidade alheia (nomeadamente a das crianças) e uma tal alarvidade na defesa acéfala das suas posições, fossem afastadas dos lugares que ocupam. O poder de pessoas assim deve ser neutralizado pois o seu efeito pode ser nefasto.

As televisões têm um poder efectivo: o poder de influência na opinião pública. E esse poder não pode estar nas mãos de pessoas com mentalidades e atitudes como acabei de ver em Júlia Pinheiro e Conceição Lino. Lamento dizê-lo desta forma tão crua. Mas é o que penso.