Como não repetir-me se todos os dias aqui escrevo e se a vida que tenho para contar é só uma, a minha?
Perdoem-me, pois, se estão recordados daquilo que hoje aqui vou reviver.
Ao lado de uma das minhas avós morava a Vizinha Modista. Havia a moradia de habitação, um pátio e depois um grande atelier envidraçado e de cujas janelas pendiam vasos com fetos. Lá dentro, naquele amplo espaço, trabalhavam outras modistas e ajudantes. A minha mãe, em adolescente, nas férias, chegou a andar lá, a aprender costura.
Por vezes a minha avó deixava-me ir para lá e, para me manterem entretida, punham-me a apanhar alfinetes, a enfiar linha nas agulhas, a apanhar linhas ou retalhos do chão; e andava de roda de uma e outra a ver o que faziam, fazendo perguntas, encantada com aquele mundo tão exclusivamente feminino. Aquilo de que eu lá mais gostava era da grande mesa de corte onde havia sempre pedras de giz para fazer as marcações e uma tesoura grande e preta em que uma das partes corria o tecido encostada à mesa, fazendo aquele belo e denso arrastar metálico.
Perdoem-me, pois, se estão recordados daquilo que hoje aqui vou reviver.
Ao lado de uma das minhas avós morava a Vizinha Modista. Havia a moradia de habitação, um pátio e depois um grande atelier envidraçado e de cujas janelas pendiam vasos com fetos. Lá dentro, naquele amplo espaço, trabalhavam outras modistas e ajudantes. A minha mãe, em adolescente, nas férias, chegou a andar lá, a aprender costura.
Por vezes a minha avó deixava-me ir para lá e, para me manterem entretida, punham-me a apanhar alfinetes, a enfiar linha nas agulhas, a apanhar linhas ou retalhos do chão; e andava de roda de uma e outra a ver o que faziam, fazendo perguntas, encantada com aquele mundo tão exclusivamente feminino. Aquilo de que eu lá mais gostava era da grande mesa de corte onde havia sempre pedras de giz para fazer as marcações e uma tesoura grande e preta em que uma das partes corria o tecido encostada à mesa, fazendo aquele belo e denso arrastar metálico.
Segundo eu ouvia a minha avó a conversar com a minha mãe, a Vizinha era careira. Perfeita mas careira. Tinha clientes importantes, de entre as quais várias aristocratas que vinham de longe nos seus grandes carros guiados por chauffeurs. Vinham aos grupos. Uma delas era da idade da minha mãe e conversavam muito. Para as outras pessoas ela era a Senhora Condessa mas a minha mãe tratava-a pelo nome. Tinha muitos filhos. Saíam do carro, buliçosos, muito bonitos e muito alegres. Uma era da minha idade e tinha um nome que a mim me parecia atípico pois não conhecia ninguém com aqueles nomes e, muito menos, conjugados. Desde logo, para mim, aquele nome me encantou e, para sempre, ficou guardado dentro de mim. Foi o nome que dei à minha filha.
A Vizinha Modista, talvez pelo contacto com as suas clientes, tinha um porte também aristocrata e uma voz com um timbre melodioso mas imponente. Era baixa, forte, peito proeminente e tinha um cabelo preto, ondulado e sempre muito brilhante. O marido, que era muito alto e magro, era uma simpatia mas, ao pé dela, uma sombra. Ela, apesar da sua baixa estatura, irradiava superioridade, confiança, assertividade.
Tinha dois netos, um bom bocado mais velhos que eu, que cedo se emanciparam. Num tempo em que ainda ninguém sonhava com o Erasmus, ambos foram estudar para outros países. Nunca sabíamos bem por onde andavam. A neta era baixinha mas tinha um ar muito moderno, jeans justos, cabelo curtinho. Quando vinha de férias e ia visitar a avó eu ficava toda contente pois parecia que ela chegava de outro planeta. O neto vinha cada vez mais espaçadamente a casa da avó, gostava de andar a conhecer o mundo.
Mas eis que um verão a neta trouxe uma novidade: um namorado. Lembro-me dele: um choque para todos. Gigante. Fazia dois dela. E negro, negro, negro. Não se falava de outra coisa. O namorado da neta da Vizinha Modista.
Quando o vi fiquei estupefacta, maravilhada. Nunca antes tinha visto um negro. Um gigante negro e sorridente, com uns belos dentes brancos. Punha o braço sobre os ombros da namorada e ela desaparecia.
Yesni was born in Ethiopia and later adopted by Dutch parents. She is 26 years old. Her name means ‘one in thousands’. Yesni is an activist, performer and creator. She loves fashion and music. |
Lembro-me da minha mãe comentar, irónica: Para a Vizinha foi um choque. Não confessa mas nem vale a pena. Basta repara naquele 'apesar': "é bom rapaz apesar de ser preto..."
Durante muitos anos, quando se falava de preconceito racial a minha mãe lembrava a vizinha: 'é bom rapaz apesar de ser preto'.
Por onde eu circulava não havia negros: nas escolas onde andei, nem um. Nas vizinhanças, também nenhum.
Só já na faculdade. Angolanos. Lembro-me de dois. Esculturais. Negros, negros. Tinham uma little paixão por mim. Quando eu estava na cantina, eles vinham ter comigo. Um oferecia-me iogurtes, coisa que eu achava divertida mas que, por dentro, me enternecia. Para ele, um iogurte era qualquer coisa. O outro ficou muito zangado quando cortei o cabelo pois gostava muito do meu cabelo. Eram muito delicados, muito sensuais e bonitos. Os meus dois namorados não achavam graça nenhuma: quando chegavam ao pé de mim, estava sempre eu guardada por aqueles dois belos rapazes.
Voltei a encantar-me com um negro anos mais tarde. Era moçambicano, um jovenzinho que teria uns catorze ou quinze anos. Magro, alto, também muito negro. Inteligentíssimo, o melhor aluno que tive. Ainda hoje me lembro do nome completo dele, três nomes que se conjugam de forma muito musical. Eu tinha vinte e um anos (foi no segundo ano que leccionei) e ele pouco menos que eu. Mas, na altura, a mim parecia-me fazer diferença e impunha-me sem muita dificuldade. Se for ao google e escrever esse nome, aparecem-me vários e não faço ideia se algum é ele. Inteligente como era, imagino que terá uma profissão muito boa. E era muito bonito, uma gazela elegante e ágil.
Sempre achei que os negros (e as negras) são muito belos. A pele, as feições, a alegria. Tudo nos negros me parece extraordinário, esbelto, feliz. Sempre que posso, à socapa, fotografo negros de perfil. A primeira fotografia que aqui mostro foi feita por mim no domingo. Puxei pelas cores para obter mais contraste e para que o perfil do belo jovem sobressaísse ainda mais. Têm um perfil que geralmente é muito bonito. Há uma estética fascinante nos negros.
Não sei porque existe preconceito ou sentimento de superioridade em relação aos negros. Juro que não sei. Não faz qualquer sentido.
As três últimas fotografias são da autoria de Dagmar van Weeghel e mostram, de forma límpida, como são belos os negros.
As três últimas fotografias são da autoria de Dagmar van Weeghel e mostram, de forma límpida, como são belos os negros.
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E permitam uma nota que injustamete é de rodapé. A RTP tem exibido documentários e filmes muito bons. Verdadeiro serviço público. Acabei de ver um documentário que me fascinou. Levei imenso tempo a escrever este post porque, ao contrário do que é costume, em que estou com um olho no burro e outro no cigano (e nada contra burros ou ciganos), desta vez dei por mim, esquecida da escrita e a ver atentamente o fantástico pianista David Helfgott. Se puderem, não deixem de ver: Olá, Sou o David!
Não vem nada aqui a calhar mas não consigo deixar de pôr: Gillian Murray fala do marido, David Helfgott.
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No post que se segue, poderão observar o meu estupor catatónico ao saber que há uma artista, Olek de seu nome artístico, que tem uma obra muito arraçada com a da Joana Vasconcelos. Dir-se-ia que uma delas anda a beber demasiado da outra. Ver para crer.
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