segunda-feira, novembro 13, 2017

Memórias com lágrimas


Filipe disse o poema. Benedita ouviu-o de olhos fechados. Pensou que poderia ficar a vida inteira assim, tranquila, de olhos fechados, ouvindo Filipe a contar histórias, a desfiar memórias, a dizer poesia.

Quando acabou, foi como se acordasse, como se tivesse que encarar o mundo de novo.




E pediu: Mais, Filipe. Não pares. Parece que a tua voz cura a minha ansiedade, faz-me esquecer os meus medos. Talvez vocês não saibam. Tenho sempre medo. Medo pelo que a minha mãe possa fazer. Tanto medo. Ela pode voltar a fazer o que já fez. Ela nunca mais se cura. Tenho tanto medo. E medo pelo que a minha irmã possa fazer. Posso nunca mais saber dela. Medo pelo que o meu pai possa fazer. E nem sei dele. Se calhar já nem é vivo, se calhar nem se lembra de mim. Medo por mim. Medo que um dia acorde e o meu rosto esteja deformado, medo de não conseguir sorrir, medo de não conseguir enfrentar a luz do dia ou a luz dos flashes, medo de acordar sem me lembrar do meu nome, medo de não ter vontade de viver. 

Ou outros ficaram em silêncio. 

Depois Meninha reagiu. Abraçou-a, fez-lhe festas no cabelo: Que é isso, menina, nem diz bobagem, não. Menina tão linda, tão boazinha... Pr'a quê essa tristeza, esse mal de viver...? Deixa isso pr'a lá. Fico até assustada por você. Porquê isso, Beny? Não tem razão pr'a isso, não. Qu'é isso, menina? Deixa isso pr'a lá, menina, deixa mesmo, ouviu? Me escute: cê não sabe o que é medo, não sabe o que é ter razão pr'a ter medo, menina.... Se eu fosse te contar meus troços, cê nem ia acreditar.'

E parou.

Benedita, surpreendida, disse: Sempre tão alegre, Meninha. Sempre te vi tão alegre. Que medos são esses...? Conta...

Filipe, baixo: Se não quer, não fala, Meninha. Deixa. Eu continuo a contar histórias...


Então, repararam que Meninha deixava correr uma lágrima enquanto começava dizer em voz baixa e trémula: Tanta pobreza na minha meninice, viu, Beny? As crianças eram criadas na rua, comiam o que os vizinhos davam, o que achavam, o que pegavam. Levava tareia de toda a gente. Não era igual aos outros menino, não queria aquela pobreza pr'a mim, não aguentava mau-trato. Fugia da rua, ia pr'a avenida, pedia dinheiro a quem passava. E vinha o policial e me levava. Ia pr'a casa de correcção. E fugia. Não aguentava. Queria outra coisa pr'a mim. Minha mãe teve pr'a cima de dez filhos, nem sei, a gente nem contava os que vinham chegando, ninguém ligava pr'a nenhum, nem ela ligava. Acho que dava alguns. Os mais bonitos, sempre havia alguém que queria pegar. Dos outros, nem isso ela queria saber, nem dava nem queria saber. Pai não conheci. Ninguém queria saber de uma criança suja e esfomeada que andava fossando pelas rua. Não sei como me criei. Ia na escola uns dias e fugia nos outros. Fui aprendendo. Mas fiquei bruta, sabendo coisa nenhuma. Um desgosto ser assim, uma ignorante. Não tenho raízes, não. Quando andei na rua passei muito e nem posso dizer quanto. Quero esquecer. Criança pobre, sem dono, aceita tudo pr'a poder ter alguma coisa pr'a comer. Até que um dia um senhor que era director numa televisão quis saber de mim. Era importante, ele, gente fina. Me ajudou muito. O que eu fiz pr'a ele não conto, tenho é dívida. Deu comer, deu tecto. Aí já eu tinha treze ou catorze anos, espigada. Levava-me com ele nos estúdios, fazia limpezas, fazia tudo, ninguém dizia que eu era tão novinha assim. Aprendi a tratar cabelos, a fazer maquilhagens. Foi lá que arranjei maneira de vir pr'a cá. Não aguentava mais.

Benedita, a medo perguntou: Mas ele não te tratava bem, Meninha?

Tratava, sim. Mas não do jeito que eu queria. Sofria muito, mas tudo escondido. Tinha medo que ele me pusesse na rua, não me levasse mais com ele. Fui fazendo o que ele queria. Mas era uma menina, sabe? Tinha meus sonho, minha liberdade pr'a conquistar. Não queria ser serva. E a voz de Meninha muito presa, agarrada às más memórias, era uma voz cheia de infelicidade.

Benedita, temendo o pior: Mas ele não tinha família?

Meninha, quase rouca: Tinha. Mas não dava muita bola pr'a ela, não. Visitava eles às vezes mas nunca conheci. Mas tinha muitos amigos. Políticos. Gente da moda. Gente do cinema. Jornalistas. Vivia sozinho. Mas tinha muita visita. Uma cobertura de luxo. Muitas festas, muita comida, muita bebida. Todos cheiravam. Queriam que eu também. Não ia acreditar se eu contasse. Muita coisa. Muita meninagem, às vezes, também. Coisa que não quero nem lembrar.

Filipe abraçou-a. Deixa, Meninha, não conta. Deixa. Há coisas que o melhor é deixar enterradas no passado. Para quê remexer? Não conta.


Depois, tentando sorrir: Olhem, meninas, a conversa está triste. Vamos parar com isto. Vamos ouvir música. Posso fotografar... Querem? Ou preferem dançar...?

Benedita abraçou Meninha. Não disse nada. Apenas abraçou.

Depois disse: Boa. Vamos fazer uma sessão. Vamos divertir-nos. Chega mesmo de tristezas, de más recordações, de medos. Já chega. Vamos fazer uma sessão das boas. Filipe, mostre o que vale. Apague a tristeza do nosso rosto. Vem Meninha, vamos escolher uma roupa bonita.

Mas Meninha ficou jururu mesmo. Sentou-se num canto do sofá. Tentou sorrir, fazer piada. Vai você, Beny. Fico a ver. Prefiro, acredita. Faz tua cara mais hot. Arrasa. Faz Filipe salivar, vai. Ele que é tão abusado... deixa ele pr'a morrer, vai.

E, então, Beny começou a despir-se, procurando com o olhar a objectiva de Filipe. Toda a sua vontade de viver naquele olhar, como se do que ele soubesse conquistar dependesse a sua vida. Vai Filipe, mostra do que és capaz. Faz parecer que sou a sua wild rose. Ou não. Faz parecer que sou uma leoa sem medo. Faz parecer que estou aqui para te conquistar. Faz parecer que estou aqui para te comer, Filipe, faz...




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O episódio que acabaram de ler e que acabei de escrever, o oitavo, vem na sequência de:
Sétimo episódio: Noite de histórias
Sexto episódio: Noite de juízo
Quinto episódio: A solidão das mulheres bonitas
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios 
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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