sexta-feira, novembro 24, 2017

Dos lobos





Tenho esta coisa com lobos. Acho que devem ser bichos inteligentes, cheios de energia e subtileza, escondendo mistérios e silêncios. Bichos cuja natureza há-de ser estranhamente próxima da minha.
Provavelmente estou a navegar. Sou menina sonhadora, da cidade, nunca sofri as durezas da ruralidade ou da fome, não conheci a verdade de umas mãos gretadas, não sei, de facto, o que é o medo paralisante. O que sei é do que leio, do que ouço, do que imagino. 
Desde pequena que ouço que os lobos são maus. E na serra vi as armadilhas. Deviam ser maus para terem que ser traiçoeiramente caçados em buracos. Comem ovelhas inocentes, atacam aldeias. 
Mas eu sempre me senti tentada a perdoar-lhes. A necessidade, o instinto. Não a vulgar maldade.

Acho que, se visse um lobo, ficava a olhar para ele e ele para mim. E acho que ele viria ter comigo. Devagar, devagar. Haveria de querer que eu lhe fizesse uma festa. E eu far-lhe-ia. Lobo, lobo, lobo mau... E ele ficaria imóvel, deixando que eu tentasse conhecê-lo. Lobo, lobo, lobinho. Eu a adivinhar os seus pensamentos, ele a adivinhar os meus, querendo descobrir afinidades, temendo não as descobrir. Pronto a atacar. Pronta a defender-me, pronta a destruí-lo. Pronto a destruir-me. Animais tentando reconhecer-se. Temendo a adversidade, pressentindo o perigo.

É como com os cães grandes. Dantes tinha tanto medo e depois perdi-o. Qualquer cão grande que se aproxime eu tenho vontade que eles se cheguem para eu lhes fazer uma festa.
O meu marido repreende, que não me afoite -- diz que não os conheço, que não sei como vão reagir. Mas é instintivo, eles aproximam-se, eu aproximo-me.
Por acaso, uma vez, fui com a minha filha e os miúdos visitar um quartel de bombeiros. Os miúdos adoram ver os carros, os tinonis, aqueles mecanismos, escadas, mangueiras, motores, luvas, capacetes. E, às tantas, vejo lá um caozão gigantão. Estava deitado a dormir e, quando nos viu a andar por lá, levantou-se e veio ter connosco. E eu, como sempre, estiquei o braço para lhe fazer uma festa. Ele, que já devia estar mal disposto com a nossa invasão em território à sua guarda, abre-me a sua bocarra, solta um rugido e mostra-me um ar feroz. Apanhei um susto, claro, não fosse ele ainda se atirar a nós, em especial aos miúdos. Recuei, sobressaltada, sem palavras.
A minha filha volta e meia fala disso para ilustrar a minha falta de medo ou de prudência.  

Mas, dizia eu, os lobos.

Os lobos são, pelo menos assim os imagino, bichos silenciosos, orgulhosos, delicados. Imagino-os a cruzarem a noite, passos cautelosos, respirando com a delicadeza dos seres superiores. Imagino-os a verem através do escuro, todos eles intuição, adivinhando os vultos, antecipando os perigos, resguardando-se para o desfrute solitário do prazer de existir. Assim os imagino. Hábeis, sábios, clarividentes, elegantes.

Já li livros com lobos. Salvam a vida de quem se deixa amar por eles.

Têm, ou assim os imagino, um pelo forte, à superfície áspero, macio como seda junto à pele, e exalarão um cheiro animal, selvagem, secreto. Terão uma respiração dócil. Outras vezes, bravia, pura sobrevivência, puro prazer de existir.


Se eu estivesse a caminhar à noite numa serra azul, tingida de magia -- as árvores como sombras esguias, talvez uma ténue lua em crescente, o frio cortando-me a pele, e eu cheia de medos, tremendo ao som dos ruídos indefinidos, piares de pássaros longínquos, murmúrios de folhagem rodopiando ao vento -- talvez sentisse, de repente, um arrepio cru na pele, talvez o coração se me acelerasse sentindo uma alteração no fôlego de um ser caminhando na minha direcção, o vapor quase invisível da sua respiração, os seus passos pisando as folhas húmidas, os musgos, as gotas pingando das árvores, eu na direcção dele, ele na minha direcção. Eu cheia de medo. Ele cheio de medo. Desconfiada eu dele. Ele de mim.


Receando-nos, farejando-nos, o coração descompassado, a respiração trémula, a pele sensível, passo após passo, o bafo cada vez mais perto, o dele, o meu, o secreto calor do nosso corpo -- e o silêncio cada vez mais cúmplice.

Depois ele veria o meu olhar húmido, a neblina envolvendo o meu corpo, sentir-me-ia desarmada, pronta para atravessar todos os medos, pronta a atravessar os perigosos labirintos, a cair no mais tentador dos abismos. E eu senti-lo-ia nervoso, fremente, envolto em bruma e solidão, corajoso como um deus do fogo, altivo como um pássaro distante. Caminharíamos ao encontro um do outro.

E não mais nos separaríamos. Um afecto feito de inexplicações, transportando memórias de tempos muito antigos e emoções vindas de uma profundidade onde não existem palavras, apenas lágrimas silenciosas, sangue latejante, olhares enfeitiçados. Para sempre. Para sempre.

Lobo, lobo, lobinho... 


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Histórias com lobos






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E o lobo que não esqueço


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Um dia muito bom a todos quantos aqui estão comigo.

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