sábado, outubro 14, 2017

Vítor Gonçalves entrevista Sócrates e entaipa-o com resmas de folhas do processo Marquês.
[A Inquisição Espanhola e outras cenas]





Ora, então, muito bem. Não vi em directo. Andei passeando à beira-mar, respirando o ar fresco da noite, ouvindo o rebolar manso das ondas. Depois, aqui chegada ao meu sofá de estimação, encostei-me e, de imediato, adormeci.

Vinha com a incumbência mental de, mal aqui chegasse, escrever um mail profissional da máxima importância mas, com o sono, esvaíu-se a importância. O costume. Penso que era a isto que Einstein se referia quando teorizou sobre a relatividade. E, se não foi a isto, foi a algo parecido. O sono dilata o espaço e, com a dilatação do espaço, minimiza-se o que tem dimensão limitada. Ou o tempo. Ou encurvam-se os planos em que nos deslocamos, tendendo tangencialmente para o infinito. E aí entrarão, quase divinas, os acordes das ondas gravitacionais. A poesia potenciada pela teoria das probabilidades. E, claro está, tudo isto é pseudo ficção. Ou talvez não. Tanto faz -- não interessa.


Mas para dizer que, agora que acordei, vi referências à entrevista por todo o lado. Sócrates tinha ido à televisão e parece que foi mais uma performance daquelas. Ora bolas. Gostava de ter visto. Lembrei-me: posso ver. Portanto, peguei no comando e, estremunhada, pus-me a manobrar a coisa. Vi-me e desejei-me para atinar com esta coisa de pôr a box a andar para trás no sítio certo.

Mas lá consegui. Já cá estão os dois. O tal jornalista que, segundo me contaram, um dia, numa reportagem algures, fora do país, se assustou de morte e, perante uma coisa de nada, se atirou de uma janela, partiu uma perna e fez cocó nas calças como um menino assustadiço -- para gozo de quem assistiu a tão ridícula cena. Não sei se é verdade mas garantiram-me que sim. No entanto, olhando para ele, estou capaz de o imaginar a atirar-se para debaixo da mesa, assustado com a banhada que está a levar de Sócrates.

Mas, então, Sócrates.

Admito. Se calhar sou eu que sou burra mas vejo Sócrates a falar e parece-me seguro no que diz. E vejo o Vitinho e até me dá pena. Fraquinho, fraquinho, fraquinho. 

E ouço as perguntas do dito Vítor e tudo aquilo que ouço (e que reproduz as acusações do despacho), me parece pífio, frouxo. Parece conversa de chacha. Mas pode o processo ser extraordinário e o Gonçalves é que ser um totozecas.


No entanto, se isto é para funcionarmos na base da fezada, então, cá para mim, aquelas perguntas e toda aquela acusação me parece coisa de crianças ou de detectives falhados, ou uma investigação na base dos meus amigos monty. E Sócrates, com uma perna às costas, desmonta aquela conversa em três tempos. 

Mas, com tanto inteligente a decretá-lo culpado, admito a hipótese de ser eu que sou burra. Admito. A sério.


No entanto, deixem que volte à mesma. É a minha matriz. A minha formação. O meu gosto pela Lógica. O prazer em dissecar raciocínios, o prazer em detectar falácias. O prazer em construir modelos rigorosos que reproduzem a realidade. Fui aluna de 18 a Lógica. E se aquilo era exigente. Mas também pode acontecer que fosse aluna de 18 aos 18 e que agora, com os neurónios desgastados, se me apresentasse a exame, não fosse além de uma valente nega. We never know.

Mas, então, numa de rigor contextual. Estamos a avaliar o quê? A moral de Sócrates? A capacidade política de Sócrates? A culpabilidade, em termos criminais, de Sócrates?

É que o primeiro cuidado a ter é o de separar as águas. 

Há vários anos, era Sócrates primeiro-ministro. Rodeada de direitolas, alguns muito meus amigos, ouvia-os dizer cobras e lagartos de Sócrates. Eu dizia: o governo está a ter um bom desempenho. Eles diziam: é irascivel, é arrogante. Eu dizia: não estou  dizer que fazia dele um best friend forever, estou apenas a dizer que está a fazer um bom trabalho no governo. Eles diziam: é uma pessoa intratável. Eu dizia: não estou a avaliá-lo do ponto de vista pessoal mas político. 


Isto. Durante anos. Misturavam planos, contaminavam os juízos que formulavam, misturavam a avaliação política com a avaliação pessoal. 

Agora não é isso. Agora avalia-se o carácter (com base no que a comunicação social divulga do processo) e mistura-se com um tema criminal.

Admitindo que é verdade que Sócrates tenha pedido dinheiro emprestado ao amigo e que fazia vida de nababo à conta dele, isso permitir-nos-ia formar juízo de índole moral. 

Ora, o que está em causa é matéria judicial. É crime usar dinheiro emprestado? Não creio. 

Claro que a suposição é que o dinheiro não era do amigo mas, sim, dele. Ou seja, está-se perante uma suspeita. Ele diz que é falso e di-lo com absoluta convicção e prova-o documentalmente. Mas é aqui que devem entrar os tribunais. É aos tribunais que incumbe a responsabilidade de avaliar se as suspeitas colhem, se as provas existem e se são robustas -- e, então, formar um juízo.

de Yayoi Kusama

Não é ao vulgar cidadão, que não tem os instrumentos de que dispõem os tribunais, que incumbe a responsabilidade de julgar e condenar. Mal fora. Talvez o tal Ventura de Loures, que defende a pena de morte, vá por aí, de dizer que não vale a pena esta coisa dos tribunais. Mas acho que era bom que as pessoas normais não alinhassem neste primarismo de fazer justiça pelas suas mãos.

Do que estou a ouvir, todas as 'acusações' são refutadas por Sócrates e parece que com fundamentação, deixando o dito Gonçalves com ar completamente apalermado.

Sócrates fala e parece deixar claro que tudo o que ali está mais parece uma palhaçada mal alinhavada. No entanto, os tribunais o dirão. Os tribunais. Os tribunais -- e não os zés da esquina que somos nós. Os tribunais e não quem se deixe impressionar pelo tamanho de resmas de papel colocadas numa mesa, ao lado do arguido, numa tentativa de o querer mostrar enterrado entre milhares de linhas acusatórias..

Quanto a acharmos que Sócrates pode ser convencido, assertivo, vaidoso, autoritário, de ser isto, aquilo ou o outro, é outro assunto, e aí entramos no domínio do subjectivo. Cada um pode achar o que quiser e cada um pode ser como quiser. Não é tema para ser misturado com temas criminais.


E eu, para concluir esta divagação, o que lamento é que a justiça seja tão lenta. Andar uma pessoa a ser investigada durante quatro anos -- a vida devassada, exposta nos meios de comunicação social, os queixumes da mãe de que está depenadinha a serem objecto de títulos de jornais, a vida inteira a ser pasto de comentadores, jornalistas a metro e redes sociais -- parece-me um abuso indesculpável. Pensar que agora ainda pode demorar mais uma mão cheia de anos até que isto se resolva parece-me uma autêntica barbaridade.

A Justiça não deve servir para poder destruir uma pessoa antes sequer de se saber se é culpada de alguma coisa.

Se se vier a provar que é inocente, quem lhe devolverá todos os anos que lhe terão sido roubados?

E não o digo por ser Sócrates: digo-o porque é um cidadão português e porque uma tragédia destas, de alguém se ver enredada nas malhas da justiça, pode acontecer a qualquer pessoa.

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Tirando isto tudo, se é para haver inquisição, pois, então, que entrem os meus amigos:

Monty Python - Inquisição Espanhola


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As imagens que aqui usei provêm da Vogue parisiense e, claro está, não têm nada a ver com nada.

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