terça-feira, outubro 03, 2017

Ver sempre o lado maluco da vida





Estava aqui a contar da minha vida a uma pessoa, para exemplificar que podem chover facas e canivetes que eu, sei lá como, consigo arranjar maneira de preservar na minha vida um espaço de normalidade e alegria. Mesmo quando o espaço é exíguo, mesmo quando o tempo para isso é limitado.

E, ao escrever sobre isto, estava a pensar que podia contar ainda mais. Porque não sou só eu que consigo sobrevoar a infelicidade sem que esta me puxe para o fosso de agruras que, por vezes, parece querer abrir-se sob os meus pés. A minha mãe, por exemplo, é como eu. E a senhora que a ajuda com o meu pai, ainda mais.

Estava com vontade de contar. Mas depois hesitei. Se o meu marido, ele que está tão habituado, volta e meia fica espantado com a minha capacidade de alienação... fará quem não me conhece de perto. A minha e a da minha mãe. Volta e meia, deparando-se com momentos complicados, ele fica quase chocado como, num instante, eu e a minha mãe fazemos a agulha e, se for preciso, nos desatamos a rir com uma parvoíce qualquer.

Vou dar um exemplo. Vou arriscar. Não fiquem chocados porque somos malucas mas somos pacíficas.


Aqui há pouco tempo, vendo-me lá chegar no meio de uma sucessão de crises cruzadas, diz-me a senhora que ajuda a minha mãe e que será talvez uma meia dúzia de anos mais velha que eu: 'Então isso é que estão a ser umas férias, hein...? A velhada até faz fila para ver quem é que vai à frente...' A minha mãe, a rir, e a bater três vezes na cama do meu pai: 'Ai, credo, não diga isso, vire essa boca para lá...' E rimo-nos as três. Mas ela não estava a ser incluída pois, apesar de oitenta e picos, não parece nada uma velha. Acontece que o marido da dita cuidadora também estava doente, tinha sido operado, andava debilitado. Então ela acrescentou com a maior das naturalidades: 'E o meu também não sei se dura muito. Um dia destes dá o peido mestre e vai desta para melhor'. Desatei-me a rir com a expressão. E ela e a minha mãe, vendo-me a rir, desataram também a rir. E ali estávamos as três, na galhofa, como se a situação fosse para rir.

Acontece que um dia destes, vinha ele de um tratamento, na ambulância, sentiu-se mal e, coitado, foi mesmo desta para melhor. Contava-me a minha mãe: 'Um caso sério. Como morreu na ambulância, meteu tribunal, uma chatice'. E eu admirada: 'Mas, então, tribunal porquê?''. A minha mãe não sabe explicar: 'Não sei. Coitado do homem da ambulância' E continuando a falar das circunstâncias da morte do marido da sua ajudante: 'Ele sentiu-se mal, caíu para cima de uma mulher que vinha também lá dentro, também de um tratamento. E a mulher desmaiou'. E eu: 'Credo. Mas desmaiou porquê? Quase morria de medo, com um morto a cair-lhe em cima, não?'. E a minha mãe já se ria: 'Sabes lá, ainda nos rimos aqui todas com ela a contar isto, o pobre do homem da ambulância todo enervado com aquele par de jarras ali, tombados, ele sem saber se tinham morrido os dois'. 

E eu a rir e a ouvir a minha mãe a rir, a contar como ela, as vizinhas e a viúva também se tinham rido... e a pensar: mas será que não batemos bem da cabeça ou será que é normal encontrar motivo de risota mesmo no meio da maior desgraceira?


O que sei é que o meu marido, a quem ainda não contei esta, de certeza que vai encolher os ombros, descoroçoado, talvez mesmo agastado. 'Malucas. O homem morto e elas a rirem como se a coisa tivesse alguma graça. Malucas.'. Penso que não é capaz de visualizar a cena, coisa de filme cómico, senão também se ria. Penso que ele acharia normal que se falasse nisto com consternação. Ou melhor, que nem se falasse nisto. 

E esta minha conversa, agora, a que propósito? 

Bem. Quando sei que alguém está um bocado em baixo ou se sente triste ou desmotivado, eu tenho vontade de dizer que não vale a pena, que é um desperdício, que bom, bom mesmo, é termos vontade de rir, é não ligar muito às coisas más, bom, bom mesmo, é vermos o lado bom da vida. Há sempre um lado bom. Ou um lado maluco que dá vontade de rir.


Olhar sempre para o lado luminoso da vida



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E é isto.

As fotografias provêm do National Geographic.

Antonio Meneses interpreta Bach : Cello Suite No.1 "Sarabande"

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E, para quem não seja dado a estas conversas, pois então que faça o favor de descer caso queira saber o que acho dos resultados mais estrondosos do PCP -- estrondosos no bom (Setúbal) e no mau sentido (Almada).

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