sexta-feira, agosto 04, 2017

O nome de Alice





Os leõezinhos atacam em força e era bom já estar em férias para ter tempo para poder escolher presentezinhos especiais para cada um deles. Mas as lojas estão cheias, os intervalos para andar a procurar bonequinhos ou carrinhos são limitados e, por isso, resolvemos ir à noite. Chegámos há pouco. Pelo caminho disse ao meu marido que quem o viu e quem o vê, a andar a escolher bonequinhas princesas. Não concordou. Diz que sempre o arrastei para todo o lado pelo que, de certeza, sempre andou comigo a escolher brinquedos para os miúdos. Digo-lhe que nunca com a motivação com que agora o vejo, como hoje a chamar-me para me mostrar as mais variadas versões dos pin y pons. Encolhe os ombros, diz que é porque não havia pin y pons. Está bem.

Agora cá em casa, ainda estive a arrumar umas coisas, sempre o que fazer, e com isto passa da meia noite. Enquanto escrevo, vejo o filme 'O meu nome é Alice' com a Julianne Moore. Impressiona-me muito esta doença. 


A primeira vez que soube de alguém com Alzheimer foi com a mãe de um colega. Era professora reformada e ele, na altura, era ainda solteiro. Casou-se tarde. Viria a enamorar-se encaloradamente, viria a ter uma filha, viria a ser feliz. Mas, na altura, era ainda apenas o filho único de uma professora com Alzheimer. Não conseguia disponibilidade mental para pensar em namorar. A mãe ocupava todo o seu espaço. Vivia numa permanente ansiedade. Houve uma altura em que a mãe tirava a roupa das gavetas, colocava em sacos de plástico com que, depois, enchia o hall. Ele chegava a casa e dava com aquilo. Mais tarde, aconteceu ele ir no passeio e ver sacos com roupa no passeio debaixo das janelas. Já sabia de quem eram. Lá os apanhava e levava para casa. Lençóis, toalhas, roupa dela. Volta e meia apanhava sustos de outro tipo. Havia bicos de gás abertos, torneiras abertas. Depois piorou. Saía de casa, perdia-se. Ele numa aflição, pelas ruas à procura da mãe, a perguntar por ela, a ir à esquadra, aos hospitais. O medo que fosse atropelada, que lhe acontecessa alguma coisa de grave. Arranjou uma empregada mas, por fim, a empregada já não era suficiente pois o estado físico degradou-se, ja era preciso mais do que isso. Internou-a. Foi um grande sofrimento para ele. Para ela talvez não, pelo que ele dizia a mãe já tinha perdido a consciência de si.


O outro caso foi a mulher do senhor da aldeia que ia fazer-nos arranjos. Ao princípio, era uma mulher activa, normal. Foi ela que uma vez me disse que, com a quantidade de coelhos que lá havia, dava para fazermos umas belas caldeiradas. Deixou-me escandalizada. Alguma vez eu era capaz de pensar em matar coelhinhos que por lá andavam em liberdade? Ela riu-se com a minha reacção. Foi também ela que disse que a única maneira de não termos mato à porta de casa era acimentarmos o chão, empedrar, qualquer coisa dessas. E eu, outra vez, escandalizada. Alguma vez? Nada disso, haveria de ter terra batida, canteiros com flores do campo. Ela abanou a cabeça como se as meninas da cidade só tivessem peneiras na cabeça. Com o tempo dei-lhe razão e o marido foi chamado para empedrar o chão em volta da casa. Anos mais tarde, o marido contou, com tristeza, que ela cada vez estava pior, que ao princípio não ligaram, que era esquecimentos da idade. Agora já não sabia o nome dos filhos, já não fazia nada. Só queria andar atrás dele para todo o lado. Depois perdeu o andar.  Até que se foi.


Quando a minha mãe foi para uma residência assistida para convalescer de uma cirurgia, por comodidade, para ficar mais perto de nós, da minha filha e do hospital, optou por uma em que a maioria dos doentes sofre de demências. Muito Alzheimer. Na altura, contei aqui. Situações que poderiam ser hilariantes se não fossem dramáticas. A minha mãe contava-nos e, com a sua facilidade em fazer imitações, quase nos desatávamos a rir. As coisas que diziam e faziam podiam ser muito cómicas. Mas não ríamos porque sentíamos uma compaixão profunda. E eu, no fundo, sinto medo. Há doenças terríveis e esta é uma delas. É daquelas situações em que o corpo se vê esvaziado da sua alma. Uma das que lá mais me impressionava era uma mulher talvez da minha idade. Muito elegante, muito bonita. Olhava-se para ela e não se percebia. Parecia completamente saudável. Sempre sorridente e faladora. O marido ia jantar com ela. O cuidado dele era tocante. Outra, de idade, punha-se na sala e dizia que estava à espera da mãe, sempre ansiosa com a demora da mãe. Outras vezes fazia conversa com a minha mãe em que contava que a mãe ali tinha estado, que daí a nada ia voltar. A minha mãe fazia de conta que acreditava e tentava acalmá-la. Apesar de ali se estar muito bem, um hotel de qualidade com assistência médica, com actividades, com toda a espécie de cuidados, ao fim de um mês, a minha mãe estava doida para se vir embora, dizia que qualquer dia estava ela também maluca.


Entretanto já acabou o filme.

É uma névoa triste que se abate sobre quem sofre desta doença mas é uma névoa igualmente triste para quem lida de perto com pessoas com esta doença.

O meu pai, pela extensão do AVC que teve, ficou com o cérebro muito danificado. A idade também não ajuda e o estado físico geral impede-o de poder combater a crescente erosão geral. De vez em quando, a senhora que lá vai ajudar nos seus cuidados diz que acha que ele já está com um bocadinho de Alzheimer mas a médica encolhe os ombros, diz que é a progressão natural e não acrescenta muito. Também há situações em que dar um nome às coisas não adianta nada. As coisas são o que são. A minha avó, mãe dele, também tinha tido um AVC mas nada que se pareça com o dele. Depois também partiu uma perna e esteve internada. Aí ficou baralhada de todo. A seguir teve uma pneumonia e internada de novo e, de novo, sem dizer coisa com coisa. Mas viu-me, disse o meu nome no diminutivo, acrescentou 'a minha menina...' e comoveu-se. Recuperou mas nunca mais ficou muito bem da cabeça. Fazia uma coisa que deixava o meu pai muito arreliado. Estávamos todos à mesa, na sala de jantar dos meus pais, e ela levantava-se, dizia que queria ir a casa do outro filho, não fosse ele ter que sair. O meu pai reagia como se aquilo fosse uma tremenda falta de educação ou uma desfeita para os presentes. Zangava-se com ela. Ela sentava-se mas ficava nervosa. Pouco tempo depois, levantava-se de novo. Todos percebíamos que aquilo já não era ela mas o meu pai teimava em reagir como se a mãe estivesse lúcida. O meu avô nunca dizia nada. Era para mim muito claro que aquilo o enchia de desgosto.


Mas, enfim, há cada vez mais notícias de promissoras descobertas e pode ser que, um dia destes, se consiga travar a evolução da degeneração cerebral. Ninguém fica cá para todo o sempre mas seria bom que se conseguisse impedir que a alma se evadisse do corpo, deixando-o tristemente vazio. Quando chegar a hora da partida, que partam ao mesmo tempo, corpo e alma. (Digo eu).

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Still Alice, com Julianne Moore




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As fotografias provêm do National Geographic.

Quem canta lá em cima é Fatoumata Diawara.

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A todos vós, meus Caros Leitores, desejo uma bela sexta-feira.

E viva a vida.

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