domingo, março 12, 2017

A favor das quotas para mulheres
[E, acreditem, até há pouco tempo eu acharia altamente impovável ouvir-me a dizer isto]




Comecei cedo a desempenhar cargos de direcção numa grande empresa. Num local absolutamente habitado por homens, eu era a única mulher a participar nas reuniões de direcção. Não sei porque é que isso aconteceu. Talvez tenha tido a sorte de, na altura, a pessoa que lá mais mandava ter acreditado que eu era capaz de fazer o lugar e depois, acredito que, porque tenha cumprido, foram-se habituando à ideia. Durante muitos anos, eu era uma entre muitos. Quando íamos para fora, para aquelas reuniões de reflexão estratégica ou para eventos desse tipo era eu, única mulher, e muitos homens. E, mesmo alargando o âmbito ao nível abaixo, a proporção era ridiculamente desfavorável ao sexo feminino.

Numa das empresas onde agora trabalho já somos duas. Mas, se alargarmos o âmbito, ao nível abaixo, já há mais mulheres. Na outra empresa, sou ainda a única mulher e, mesmo alargando o âmbito, a minoria feminina é ainda expressiva.

Pelos cargos que tenho tido e pelas empresas pelas quais tenho passado, o contacto com muitas outras empresas, nacionais e internacionais, é frequente. Por isso, quando falo, a minha opinião resulta não apenas da minha maneira de ser mas, também, de muita experiência e observação.

Como comecei cedo a trabalhar e já trabalho para cima de há mil anos, tenho encontrado de tudo: homens e mulheres capazes e incapazes. 

Não apenas tenho conhecido uma grande maioria de homens que acha que, na hora de escolher alguém para algum lugar de relevância, se deve ir buscar outro homem, como tenho conhecido mulheres que acham que, para ingressar nesse pequeno grupo de mulheres que tem algum poder, deverão insinuar-se junto dos homens que mandam. Tenho-as visto com saias mais curtas do que faria sentido, mais decotadas, mais maliciosas, tenho-as ouvido dizer que têm que fazer pela vida.

Qualquer dos comportamentos é estúpido.

E durante anos a fio eu achei que as mulheres devem ser como são, sem se masculinizarem e sem se tornarem bonecas, sem abdicarem da sua vida própria, sem sentirem que têm que provar mais do que os homens para conseguirem o mesmo que os homens. E, claro, durante anos a fio, fui convictamente contra as quotas para mulheres.

Julgava a situação sobretudo a partir da minha própria posição. Nunca senti necessidade de me arranjar menos ou mais do que a minha natureza e vontade ditam, nunca me senti condicionada a sacrificar a minha vida familiar, nunca senti que deveria esforçar-me por me interessar pelos mesmos assuntos que interessam aos meus colegas homens -- e, portanto, achava que se comigo era assim e funcionava bem, não faria sentido obrigar a que alguns lugares fossem ocupados por mulheres, apenas por serem mulheres e não pela sua qualificação para o cargo.

E, se estou a falar nisto escrevendo no passado, é porque a minha convicção se tem vindo a esbater.

Somos levados a pensar que a estupidez tem limites ou que gente mentecapta pode vir a reconverter-se. Mas isso não acontece. E somos tentados a subestimar a poder de sobrevivência dos medíocres. Ora, como se tem visto, a humanidade tem vindo a evoluir, em muitos casos, às arrecuas e de patas para o ar.

Ou seja, estando instalado, um pouco por todo o lado, um status quo em que prevalece um machismo endémico, instalado, enraizado, já se viu que não é de forma natural que a coisa se desfaz.

Portanto, neste momento, estou em crer que isso das quotas é mesmo a melhor solução. Admitamos que, numa comissão de cinco pessoas, apenas uma é mulher e que, no mínimo, deveria haver duas. Não acredito, e não acredito mesmo, que na organização não se encontrasse uma outra mulher que não fosse tão capaz ou até melhor do que o pior dos outros quatro homens.

Seja num governo, num parlamento, numa comissão executiva, numa equipa de direcção, seja onde for, acho que não há como negar que se a causa é justa e se a bem nada se consegue, o melhor mesmo é ir a mal. À força. Seguindo a lei das quotas. Pode não ser politicamente correcto dizer isto mas digo na mesma: se não for pela força da lei, não vai lá de outra forma. E isto não atenta contra a dignidade das mulheres -- pelo contrário, abre-lhes uma porta que, como a evidência dos factos demonstra, de outra forma continuará praticamente fechada.

Soa mal ser a favor das quotas? Acredito que sim. Durante muitos anos também fui indubitavelmente contra. Mas agora, com igual convicação, defendo o contrário: se não houver a obrigação de ter um mínimo de mulheres em determinados lugares, daqui por muitos anos ainda se andará nesta conversa mole e as mulheres continuarão maioritariamente em lugares em que pouca ou nenhuma influência têm na condução da organização à qual pertencem.


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As fotografias são de Erwin Blumenfeld

Lá em cima Karen Matheson com Paul Brady interpretam Ae Fond Kiss -- e, se escolher uma canção de amor para aqui pode parecer um erro de casting, saibam que não. De facto, não há cá nenhumas declarações de guerra aos homens. Acho que a coisa só lá vai com peace and love entre homens e mulheres (nas devidas gradações, claro está).

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E agora aceitem o meu convie e queiram descer, por favor, até ao texto abaixo em que dou a palavra a um Leitor que me disse o que é que devia fazer-me sentir calafrios.

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2 comentários:

Anónimo disse...

Tudo menos quotas.... O 25 de abril foi há quarenta anos, com quarenta anos quase ninguém é CEO de uma grande empresa. Pouco a pouco as coisas vão mudando. Até há meia dúzia de anos, poucas eram as mulheres que ingressavam nos cursos de Economia e Gestão. Tudo para Letras, História, Direito... as Humanidades. Nos últimos anos, tem havido uma grande mudança a este nível. No mundo jurídico, o que não falta é mulheres: juízes, advogadas, notárias, etc. Falta grandes sociedades de advogados em que os sócios-fundadores/principais sejam mulheres: claro, foram todas criadas ainda antes do 25 de abril ou por advogados que, nos primeiros anos da democracia, já andavam nas altas rodas, a maioria políticos.
As quotas violam o princípio da igualdade, discriminando os homens e, para mim pior que sou mulher, violam a dignidade das mulheres. Mas, sobretudo, servem para criar ou permitir a continuação de estigmas que vêm desaparecendo naturalmente.
Se ainda há mulheres discriminadas apenas porque o são, haverá mulheres contratadas apenas porque são bonitas (conheço um caso em que o sócio de uma sociedade escolheu uma jovem advogada dentre uma série de candidatos porque achou que ela era um bom "match" para o irmão, também sócio). Isto já não tem relevância? Não dá para controlar tudo na vida.
É claro que não basta a igualdade no papel (na lei) se, na vida real, a força e o preconceito impedem a sua concretização. Mas cada vez se ouve falar mais de mulheres que foram nomeadas para este e para aquele cargo de topo, basta ver aquela página no final do Expresso com pessoas em destaque, normalmente gestores. E se/quando houver menos homens do que mulheres, daqui por umas décadas, depois de os efeitos de haver uma muito maior percentagem delas nas faculdades se produzirem? Criamos quotas para eles?
JV

Anónimo disse...

Um excelente ponto que a Leitora JV fez! Estou inteiramente de acordo com ela! Ainda bem que é uma mulher a dizer isso mesmo. E, como se não bastasse, uma mulher inteligente e bem articulada, com personalidade quanto baste, como é a Leitora JV.
Bom Domingo (embora com vento), UJM!
P.Rufino