quinta-feira, janeiro 12, 2017

Caixinhas de música, penas, canetas de aparo e tinteiros, arranjo de sapatos, cestos de baracinha.
E algumas memórias.



Je crois entendre encore
Caché sous les palmiers
Sa voix tendre et sonore
Comme un chant de ramiers.
Oh nuit enchanteresse
Divin ravissement
Oh souvenir charmant,
Folle ivresse, doux rêve!

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É mais do que sabido por quem, por aqui, me acompanha: não sou pessoa de ficar fechada em casa. Quanto mais estafada ando, mais me apetece dar ar à pluma. Se tenho que descansar o corpo, é caminhando que descanso. Se tenho que descansar a mente e não posso caminhar, é escrevendo noite adentro que descanso.

Assim acontece, agora, uma vez mais. Depois de um período de trabalho em excesso, com gripes cá em casa, em casa dos meus pais, uma ida a uma urgência hospitalar, recuperação clínica arrastada e cheia de complicações por parte deles, e por todo o lado crises e mais crises, eis que, logo que a bonança se faz anunciar, aí estou eu a querer libertar-me de tanto peso e sair por aí. Sem planos, tudo combinado na véspera, às tantas da noite. Aqui estou, portanto, restabelecendo forças. Claro que ando com dores de garganta (que não estão a passar e bastante me incomodam; comprimidos e pastilhas não estão a resultar espectacularmente). Mas mal menor. Porque bom, bom, é poder andar de nariz no ar, espiolhando gentes, edificios, novidades, fotografando candeeiros, carrocéis, lojas, descobrindo o que houver para ser descoberto.

Mas ainda não relaxei o suficiente. Há bocado até apanhei um certo susto. Uma chamada. O telefone estava longe de mim, perto do meu marido. Trouxe-me o telefone, anunciando tratar-se de um ex-colega meu, e vinha também com uma certa apreensão na voz: 'atende...'. Era um dos muitos que a vida vai dispersando ao sabor da gestão de portfolios por parte dos accionistas. Trabalhámos juntos durante anos, agora já não. Mas a amizade fica. Contudo, a esta hora da noite, estar a ligar-me parecia prenunciar triste notícia. Ultimamente, tenho recebido uns telefonemas ou sms a dar conta de notícias que me deixam pregada ao chão. Pensei logo que, a esta hora, só podia ser coisa assim.

Mas não, nada disso. Estavam num jantar, contaram-lhe das minhas novas andanças, coisa que o deixou muito admirado, e resolveu tirar a coisa a limpo, logo ali, na hora. Mas a verdade é que não sei se é de andar um bocado cansada, se é a porcaria da gripe que me deixou com a imunidade reduzida, a verdade é que, durante parte do telefonema, apesar de ele me falar de assuntos normais, eu estava ansiosa, à espera do momento em que ele se ia deixar de preliminares e dar-me, finalmente, a má notícia. Mentalmente, eu ia elencando quem é que poderia ter sido. Credo. Felizmente nada. Ali a jantarem, animados, e a resolverem envolver-me na conversa. Só isso.

Mas, portanto, ia eu dizendo que ando a descansar. Por dia temos dado para cima de vinte mil passos. Aliás, se não estou em erro, ontem fizémos cerca de trinta mil. Sei isto porque o meu filho instalou uma app no telefone do meu marido para monitorizar os percursos, se os caminhos são a subir ou a descer, fáceis ou complicados, quantos quilómetros, quantos passos, quantas calorias gastas. Chegamos ao fim do dia e pasmamos com o que andámos. Tão bom andar.

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Adiante. Como sabem, para além de natureza e de arte, gosto de consumir ambientes urbanos. Nomeadamente, como ontem já mostrei, gosto de andar a ver montras. Geralmente nem entro pois, em regra, o que me move não é o consumo mas o ver o que há à venda, objectos diferentes, alguns cuja finalidade nem descortino ou, então, a decoração das montras ou das lojas.

Nesta loja aqui em baixo, achei graça, sobretudo, à tradicional figura feminina completamente insólita no meio daqueles objectos modernos e coloridos. A ideia de porem uma boneca, naqueles preparos, em tamanho natural, ali naquele contexto...


Esta aqui abaixo é uma verdadeira arca de tesouro, a caverna de ali-baba, um cenário de mil sonhos. Há ali de tudo. Entrei, empurrando a porta. Nenhum outro cliente lá dentro, só o que deveriam ser os donos mas com ar de quem tinha sido apanhado a meio de alguma discussão, um clima estranho. Andei por ali a cirandar mas a sentir que estava a ser uma intrusa. Não vi preços nem tive coragem de perguntar. Dali, se as coisas não fossem caras, era capaz de me deixar seduzir por quase tudo: caixinhas de música com bailarinas, uma com uma senhora a ver-se ao espelho, outra com um carrocel, outras com bonequinhos de todo o tipo, bailarinas, passarinhos. Depois pisa-papéis lindos, de vidro, com flores ou insectos lá dentro, ou motivos às cores. E casinhas de bonecas. Ou teatrinhos. E caixinhas lindas. Com pedrinhas, com lantejoulas, com aberturas disfarçadas. Coisas mesmo bonitas. E muitas, muitas.


Esta aqui abaixo tem objectos para escrita: penas, canetas com aparo, canetas de tinta permanente, tinteiros, carimbos antigos. E papéis muito bonitos, de diferentes gramagens, diferentes cores. Uma coisa que parece de outros tempos.


E depois os bares de tapas e petiscos, cerveja gelada e boa, muitas vezes apresentados com humor.


E, em pleno centro da cidade, por onde passam hordas de turistas e boémios, um sapateiro do mais tradicional que há, daqueles que já rareiam em Lisboa. Tive que aumentar agora a luminosidade da fotografia para se ver alguma coisa porque a fotografia foi feita já ao cair da noite e a lojinha estava quase mergulhada em escuridão (e eu não quis fotografá-lo à descarada, muito menos usar flash). Mas fez-me lembrar o Ti Luís da minha infância junto de quem eu gostava de estar para ir perguntando tudo da sua arte. A minha avó não queria e a minha mãe, quando sabia, zangava-se com a minha avó, que jeito uma miúda de 3 ou 4 anos estar ali a moer a paciência ao pobre homem que deveria era gostar de estar a trabalhar sossegado, habituado a estar em silêncio. Mas eu gostava tanto que a minha avó acabava por ceder. E o Ti Luís dizia que ela me deixasse lá ficar, que eu não incomodava, até lhe fazia companhia. Recordo-o com ternura.


E depois, mais inesperada ainda, uma loja de cestos. As saudades que despertou em mim. O meu avô --  filho aventureiro de um pai que deixou mulher e filhos pequenos para ir viver para o outro lado do mundo, fugindo a dívidas de jogo, as terras e parte das casas perdidas -- saíu muito cedo do Algarve para percorrer terras de Espanha e França. Mais tarde regressou ao País, arranjou uma namorada uns bons anos mais nova e formou família. Mas conservou um passatempo muito algarvio, que, em criança, devia ter visto às gentes da terra, provavelmente às mulheres. Arranjava folhas de palmeiras e, nas horas livres, depois do trabalho, das pescarias e da horta, fazia cestos. A minha mãe gostava imenso, pedia ao sogro para lhe fazer cestas, alcofas com asas, pedia que lhes reforçasse o fundo. E ele fazia. Lembro-me de os ver a combinar o tamanho e de ele se esmerar nos remates. E fazia cestas para pôr a fruta, cestinhos para pôr os ovos. Lembro-me tão bem disso. A arte dele, a rapidez com que o fazia, o cuidado com que escolhia as folhas para com elas fazer os entrançados. Cestas de baracinha, dizia ele. A minha avó não ligava nenhuma a esses trabalhos do marido. Mas ele não queria saber, fazia na mesma. Não fiquei com nenhum. Quando ele morreu, quis ficar com o cadeirão em que ele se sentava e com o móvel onde estava a televisão enquanto fazia os cestos, e com outras coisas assim. Mas não vi nenhum cestinho feito por ele. Quando agora vi esta montra cheia de cestos de baracinhas lembrei-me logo do meu avô tão, tão, querido, tão meu amigo, tão tolerante, tão boa onda.


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Estou a mostrar isto tudo e com estas conversas e não faço ideia de se isto interessa a alguém. Mas faz de conta que é um diário a céu aberto, que estou a escrever só para mim, para ficar registado para o improvável caso de um dia mais tarde me dar para ir à procura de qualquer coisa. 

E a música que escolhi se calhar fica aqui deslocada. Mas é muito bonita. Gosto mesmo. Talvez tenha a ver com estes meus assomos melancólicos, não sei, sei é que me apeteceu estar a ouvi-la enquanto escrevia

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Já cá volto para mostrar a cavalagem.
(Cavalagem como plural de cavalos - calma aí.)

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1 comentário:

Alice Alfazema disse...

Em cima dos armários da minha cozinha tenho cestos algarvios, quase todos têm tampa, são de vários tamanhos, um deles foi feito por alguém que conheci, tem lacinhos feitos em lã a prender a tampa, todos eles vieram para a minha casa cheios de figos.