quarta-feira, dezembro 14, 2016

Vagas topologias





Na noite de segunda para terça-feira deitei-me sem estar perdida de sono o que significa que, como sempre que isso acontece, não adormeci de súbito e, portanto, espertei. O tempo a passar e eu a ver que já não tinha tempo de dormir. Por fim, adormeci para logo depois acordar, com medo de que o telemóvel não despertasse. Ou seja, praticamente não dormi.

Quando saí de casa, noite fechada, estava um nevoeiro cerrado, tudo molhado, parecia chover tanta a humidade. A música na rádio era boa e conduzir de noite, sem ninguém mais nas ruas, é bom. 

Contudo, como tinha hora marcada para me encontrar com o colega com quem faria grande parte da viagem, estava com medo de me atrasar. Mal se podia andar, mal se via. Cheguei ao pé dele em cima da hora, ainda de noite.

Nevoeiro pelo caminho. A reunião, a centenas de quilómetros, começava às dez mas, apesar de tudo, como damos folga para todos os imprevistos, chegámos antes. Beijos e abraços, há algum tempo que não via algumas das pessoas. Mais tarde, a seguir ao almoço, veria algumas pessoas pela primeira vez.


Cheguei a casa cedo, antes das oito da noite. Mas estava num tal estado que me deitei no sofá e adormeci profundamente. Despertei cerca de meia hora depois, o meu marido já ao pé de mim, mas eu ainda a precisar de dormir mais. A custo, lá consegui acordar. Passado um bocado, chamou-me para jantar. Quando ia começar, ligou-me a minha filha, admirada por eu não lhe ter ligado. 

Depois de jantar, ligou-me o meu filho. 

Sentei-me agora aqui mas estou com pouca energia. Não é pelo dia, que não foi cansativo, é pela noite passada, não dormida.

Ao começar a escrever pensei que podia fazer dez posts diferentes. Talvez uma credível materialização da topologia possa ser qualquer coisa como esta: uma pessoa passar o dia num sítio e viver ou antever situações tão díspares e de natureza tão distinta que pode parecer que não se tocam, que não aconteceram no mesmo espaço/tempo, como se dentro dele coexistissem diferentes dimensões, realidades que não se intersectam. Uma realidade imaterial de contornos difusos que se desdobra noutras que não se reconhecem entre si.


A dada altura, de tarde, emocionei-me. Disfarcei. Nessa altura, vi um outro também emocionado, identicamente a disfarçar. Ao mesmo tempo, outras pessoas riam abertamente e quase todos batiam palmas, incluindo eu.

Noutra altura, enquanto ao meu lado ouvia conversas sobre negócios em geografias remotas ou projectos inovadores e sustentáveis, actividades com ebitdas periclitantes e outras mais seguras, mantinha eu uma conversa com uma pessoa, magra, cansada, que tem a mãe com Alzeihmer, que já apenas a conhece a ela, dando-lhe, por isso, a responsabilidade adicional de, todos os dias, dê por onde der e custe-lhe o que custar, ir vê-la para que a mãe veja alguém que consiga reconhecer.

Pelo meio, recebo mails e sms e respondo e participo e interesso-me. Mas a verdade é que, frequentemente, sinto a necessidade de me deslocar para as silenciosas e benignas pregas do espaço/tempo onde reconheço traços de humanidade ou onde me parece que as coisas verdadeiramente acontecem.


Não quero nem posso cometer indiscrições pelo que nada posso contar. Mas direi que me aconteceu, como tantas vezes me acontece, sentir um distanciamento que me leva a ver coisas que mais ninguém parece ver.

Quando na viagem de regresso, vimos os dois a comentar o que se passou, muitas vezes parece que estivemos em lugares distintos.

Depois conversamos sobre séries ou filmes, sobre gente conhecida, sobre lugares bons para se passear, sobre a família. De vez em quando dá-me sono, sinto que, se fechar os olhos, adormecerei. Não fecho, prefiro vir acordada e fazer companhia a quem vem a conduzir, tão cansado como eu.

Agora na televisão vejo que Mário Soares, o velho leão, está sem forças. Tenho pena. Mas de nada serve acreditar que a eternidade está ao alcance dos mortais. Não está. Somos frágeis, perecíveis. Sobrevive-nos a memória que de nós conservarão os que um dia nos amaram. Para uma minoria, para os que têm a sorte de ser tocados pelo sopro divino, sobrevive a sua obra. 

Hoje foi a enterrar o irmão de um amigo meu, mais novo que ele, alguém de quem tanto ouvi falar ao longo de anos. Pelo que o meu amigo contava, parecia que o irmão tinha uma vida que jorrava de uma fonte inesgotável. Afinal esgotou-se. Imagino a tristeza do meu amigo. E eu não pude ir dar-lhe um abraço.


Tudo tão relativo, tão frágil. Tudo tão precário.

É um lugar comum, mais do que comum, dizer que não vale a pena gastarmos um minuto da nossa vida com azedumes, a aborrecer os outros ou a deixarmo-nos entristecer com a maldade alheia. Eu tento não fazer mal a ninguém e tento perdoar a todos os que, talvez até involuntariamente, me fazem mal. Nem sempre é fácil. Mas tento. Sabemos lá nós o que a vida guarda para nós...? Não quero desperdiçar um segundo da minha vida com o coração envolto em tristeza, e tomara eu conseguir levar a alegria da generosidade àqueles que parece que têm o coração fechado.

Mas também não era sobre nada disto que eu queria falar. Aliás, não queria falar de nada. Sabe-me bem estar aqui na sala quase às escuras, a escrever sem assunto, alheada de tudo, a ouvir música, em paz.

No outro dia, para acomodar na sala, nomeadamente neste sofá, as numerosas claques que vieram para o futebol, todos os livros que por aqui andavam, foram para outras paragens. E eu gosto de, no meio das palavras que escrevo, de vez em quando abrir um livro e ler o que o acaso me mostra. Agora não os tenho perto de mim. Podia ir buscá-los mas estou assim como me vêem, sem grande energia. Então, abro blogues. Abro ao acaso. Leio palavras limpas, outras imprevistas, outras talvez pensadas, umas talvez com destinatário, outras não, palavras soltas como pássaros livres, num lago, num bosque, voando ou vagueando sem pressa. Ou como flores, quase sem corpo, quase só alma. Ou com saudades. Ou apenas tingidas pelo vazio.


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Todos os dias recebo vários mails. Não consigo responder a todos mas leio-os. Posso não agradecer mas saibam que me sinto agradecida.

Hoje tinha um com um vídeo que, há uns anos, já tinha visto mas que revi com prazer, talvez mais ainda agora do que na primeira vez.

Partilho-o convosco. Parece que as palavras que neste momento estou a escutar de novo me tocam de uma forma especial.

Dignidade e elegância. A importância dos acasos. A beleza da generosidade. As diferentes dimensões da gratidão.

Discurso de Leonard Cohen ao aceitar o Prémio Príncipe das Asturias.




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E dançar no meio da noite.

Beleza e paixão. A pele e o corpo. O toque.

E a tragédia dos fins que não se desejam. O adeus. O sangue sem fim, o lamento sem voz. 

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Aqui já acima, The Borodin Quintet & Alexander Buzlov (violoncelo) interpreta o Adagio do Quinteto de Cordas de Franz Schubert. Polina Semionova e Vladimir Malakhov dançam-no segundo a coreografia Caravaggio de Mauro Bigonzetti¨.

Lá em cima Camille Thomas interpreta El Cants Dells Occels de Casals.

As fotografias são de Zsolt Kudich um dos vencedores do The 2016 National Geographic Nature Photographer Of The Year.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira.
Saúde, sorte, afecto, alegria -- para todos.


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3 comentários:

bea disse...

Bom, tinha pensado, "estas fotos estão demais, onde é que a JM as arranjou". E pronto, está explicado.
Hummm...também estive um bocadão acordada nessa noite; culpa minha, pela manhã estava tão palerma que resolvi fazer café antes de ir nadar. Tornou-me o dia mais leve e a noite mais pesada, facto que a experiência fazia antever. De resto, os meus afazeres são por ora muito parados de pernas e portanto ter dormido pouco deu-me algum sono à tarde mas nada de grave.

Dado que não podia falar com ninguém porque ninguém que verdadeiramente me importa queria falar comigo e cada um na sua vida tem muito pouco tempo e não sobra para entrar na dos outros, pus-me a trabalhar enquanto ouvia rádio. Não é que ela fale comigo, mas há ali quem fale: falam para os ouvintes, falam uns com os outros e vou trabalhando e metendo a colherada de vez em quando e faz de conta que é uma conversa. Não é pior que falar com a gata, é só um bocadinho diferente. A gata é melhor no aspecto em que me está à mão, olha-me com olhos intrigantes mas fiéis, sempre meio fascinada o que me desvanece; e posso mexer-lhe e fazer bem às duas. Na rádio: na verdade não conheço aquela gente, mas gosto-lhes da voz e entretenho-me a discorrer com eles, ou a seguir-lhes o pensamento coisa que, com a gata não acontece. Portanto, empalmando uns com outros, acho que tenho muita gente em casa (sim, a gata para mim é gente, pena que não fale de vez em quando nem seja - ainda - capaz de responder ao meu desafio de dá um beijo à dona).
E posto isto, gostei delicadamente deste post tão bonitíssimo. A menina esmerou-se. Se foi do sono e do cansaço, deixe-se atingir de vez em quando esse estado de solução saturada.
E também lhe desejo muita coisa boa a acontecer neste dia

bea disse...

E não há dúvida: a vida de Cohen ficou desde cedo indissoluvelmente ligada a Espanha. Interessante.

Anónimo disse...

Cohen intemporal. Um grande senhor da música e da poesia. O seu estatuto artístico e como pessoa é verdadeiramente único.
P.Rufino