sexta-feira, novembro 04, 2016

Vita brevis





A propósito de uma situação que agora não vem ao caso (e que não tem a ver, directamente, comigo), a minha mãe vinha a dizer-me que, desde que soube, todos os dias reza ao santo da sua devoção (santo esse que, afinal, vi agora na wikipedia, nem é oficialmente santo).

Desde que me conheço que dou conta que, em situações de aflição, ela pede a protecção dele e, do que sei, tem sido atendida. Por isso, fiquei ainda mais descansada.

Vinha eu no carro e, como sempre, falando com ela e, como sempre, sabendo dela, do meu pai, da sua tarde (porque ligo também à hora de almoço e aí falamos de como passaram a noite).

Ao falarmos dos casos bem sucedidos de recuperação do cancro, lembrou a sua amiga que tirou um peito há uns vinte anos, o outro peito há uma meia dúzia, parte do estômago nem sei quando e que, como eu bem sei, mantém uma fantástica qualidade de vida. Saudável, sempre no passeio, sempre disponível e bem disposta, ninguém diria que aquela alentejanita morena e miúda já lá vai com mais de oitenta anos e umas quantas peças a menos.

E falámos também na sua própria recuperação, também tão extraordinária. Tiraram-lhe metade do cólon e, no dia seguinte, quando lá cheguei, já ela estava a pé, já tinha ido à casa de banho, ia almoçar normalmente e, ao 3º dia, teve alta como se nada se tivesse passado.


Falo sobre isto com um pesado sentimento de precariedade em cima de mim. Estes últimos dias têm-me sido férteis na demonstração de que, na verdade, não sabemos mesmo o que o instante seguinte nos reserva.

Quando a minha mãe saíu do hospital foi para uma residência assistida. Tínhamos tratado disso antes pois não sabíamos o que se seguiria à cirurgia. Temíamos que tivesse que fazer tratamentos, que devesse ter enfermeiros ou médicos por perto. Felizmente não foi necessário. Contudo, cansada como também andava pela sua situação de quase prisioneira por causa do estado do meu pai, achámos que devia aproveitar para se recuperar já que, antes da operação, andava anémica e fraca. Aquela residência é como um hotel de qualidade com serviços de enfermagem. É um edifício amplo, muito bonito, com excelentes condições. Pelos preços praticados apenas é acessível a quem tenha rendimentos folgados. Digo-o com pena pois todos os lugares com esta finalidade deveriam ser sempre assim: arejados, agradáveis, luminosos e proporcionando uma vida inteiramente digna.

Esta tem salas muitos espaçosas que comunicam entre si, jardins interiores, amplas escadarias. Não há, nem de perto nem de longe, aquele aspecto de lar de idosos. As pessoas que lá estão são praticamente todas pessoas de idade mas grande parte delas com autonomia. No piso de cima estão os acamados. Mas, em circulação, estão os que andam, alguns que andam com apoio de pessoal auxiliar, alguns de cadeiras de rodas. Mas a maioria parece bem. Um homem de meia idade com síndrome de Down fazia a alegria das suas vizinhas. Alegre, meigo, espontâneo. Gostava de dançar. Tratavam-no pelo diminutivo e, talvez por a minha mãe ter muito jeito com crianças, gostavam bastante um do outro.


Logo no primeiro dia, fui lá ter com a minha mãe à hora de jantar. Já estava na sala de refeições Ao passar por uma zona em que estavam alguns comensais, uma mulher ainda relativamente nova, bonita, elegantemente arranjada, com um colar de pérolas, sorriu-me. Sorri-lhe também. Ela disse-me: 'Ah, parece que conheço esta senhora...'. E eu disse 'Parece-me que também a conheço mas não me lembro de onde'. Ainda não sei de onde a conheço mas a cara dela não me era estranha. À sua mesa estava um senhor -- que vim depois a perceber ser o marido e que todos os dias lá ia visitá-la e jantar com ela -- e que olhou para mim, fez um gesto na direcção da mulher e encolheu os ombros, como que eu não fizesse caso.

Sentei-me, então, à mesa onde estava a minha mãe com outras duas senhoras. Uma olhou muito séria para mim e a outra sorria a medo. No dia seguinte, quando repeti, a tal senhora muito séria começou a protestar, que já não se cumpriam as regras, a querer saber se as regras tinham mudado, que se as regras agora fossem outras talvez ela pudesse aceitar. Estava verdadeiramente irada. A minha mãe muito atrapalhada, a querer justificar-se e eu perplexa com aquilo. Disse-nos, então, que estava indignada por eu estar sentada a uma mesa onde, na opinião dela, apenas deveriam sentar-se residentes. A responsável pela sala veio pedir-me desculpa e dizer-me que no dia seguinte iria mudar a minha mãe de mesa porque aquela senhora, antiga professora de liceu, era conflituosa, obsessiva, e não conseguia estar sem arranjar problemas. Fiquei um bocado apreensiva, queria que a minha mãe se sentisse bem e feliz e aparecia-me uma daquelas.

No dia seguinte, ao pequeno almoço, a minha mãe calhou sentar-se à mesa da tal senhora mais nova e bonita. Ao pequeno-almoço não havia mesas guardadas. À minha mãe a senhora pareceu normal e simpática e estavam a conversar. Então, a meio da conversa e com naturalidade, a senhora das pérolas despejou o iogurte no guardanapo. Outra, na mesa, ficou escandalizada mas de uma forma quase infantil : 'ai! ela está a pôr o iogurte no guardanapo!'. Mas a primeira não ligou e comeu-o com colher, normalmente. E a outra sempre a apontar e a dizer para a minha mãe 'ai, está a sujar-se toda, sujou a mesa!'. Mas a primeira continuava sorridente e tranquila. Depois, como se dissesse uma coisa normal, disse às suas colegas de mesa: 'posso comer porque tenho duas línguas, uma é para falar e a outra para comer'. As outras ouviram com atenção, talvez a pensarem se também teriam duas línguas. A minha mãe estava parva com aquilo pois todas lhe pareciam normais.

Veio depois a saber que a senhora tinha Alzeihmer já há alguns anos.


A responsável contou-nos que aquela residência era vocacionada para demências. Inicialmente a minha mãe era para ir para outra mas, por razões de proximidade a mim e à minha filha e também ao hospital, tínhamos optado por aquela mas sem sabermos daquela particularidade.

Encontrámos lá uma senhora que aparece nas revistas, nas recepções em embaixadas ou festas do género. Sempre penteada e vestida como se para um cocktail ou vernissage fosse, com vestidos ou casacos compridos de belos tecidos e belos cortes, elegantes carteiras e sapatos, vistosos pregadores, quem a visse diria que tinha chegado ou estava de partida para um importante evento de sociedade. No entanto, não, todo aquele aperaltamento era mesmo só para estar ali, na sala.

E, outra vez, a minha mãe estava na sala grande perto da entrada, uma que tem uma parede envidraçada que dá para o jardim, e estava a conversar com uma outra que conversava normalmente. No entanto, às tantas, perguntou à minha mãe: 'viu a minha mãe? disse que vinha cá lanchar comigo e ainda não apareceu' e a minha mãe ficou sem saber o que dizer porque a sua colega de conversa devia ter mais de oitenta anos. Depois tinha aparecido uma empregada para a levar para a sala de refeições mas ela não tinha querido, que a mãe devia estar a aparecer.

E todos os dias, quando eu chegava, a minha mãe contava-me as fantásticas conversas e proezas das suas vizinhas. Acabou por se tornar amiga de duas senhoras sem problemas de cabeça. Uma era viúva, médica, sem filhos, tinha sido operada e estava em recuperação e outra estava zangada com o filho, vivia numa aflição por causa disso; também tinha sido operada e estava a preparar-se para nova cirurgia.

Quando eu vinha de lá, vinha contente por vê-la tão bem mas, apesar de quase toda aquela gente parecer estar bem e, eté, feliz, um bocado triste por ver como a natureza, por vezes, prega tais partidas tornando pessoas que antes estavam bem, em seres dependentes, solitários, dementes. E pensava que tomara que nunca eu fique assim, doente do corpo ou da alma ou sozinha ou sem saber de nada, à mercê do que queiram fazer comigo.

Depois disso, e ainda mais que antes, parece que tenho sempre a sensação de que não devo desperdiçar um minuto com coisas que não interessam, que não devo aborrecer-me à toa, que não devo deixar de fazer aquilo que me agrada e que é inócuo para os outros. Sei que é estultícia pensar que se pode alcançar a felicidade mas a verdade é que eu não quero cá saber de mas-mas e a procuro mesmo -- e sinto que frequentemente a encontro. E isso é bom enquanto durar.


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As fotografias são de Michelangelo Cecilia e, como é bom de ver, não devo estar muito bem da cabeça para achar que aqui ficam bem.

Lá em cima Antony and the Johnsons interpretam Another World. 

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E eu desejo-vos a todos, meus Caros Leitores, muita saúde, paz e amor.

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3 comentários:

bea disse...

Por acaso...que raio tem uma coisa a ver com a outra?! Ainda pensei que os garotos pudessem ter morrido jovens ou assim e a referência surgisse lá mais para o fim do texto. Mas afinal é só por desporto. Ou gosto de ver gente nova nua ou parcialmente, em foto artística. Está certo. Cada um tem sua mania.

Um Jeito Manso disse...

Olá bea,

Acabo de ler os seus protestos sempre com vontade de rir. Leva tudo sempre a sério? Eu não.

O texto saíu-me sério e, ao chegar ao fim, pensei que tinha que lhe injectar oxigénio. Portanto, não foi tarde nem cedo. Pensei: isto está a precisar de uns gatinhos fofos. E pronto, coloquei estas fotografias.

Só agora que li o seu protesto é que reparei que os gatinhos tinham uns rapazolas em fundo mas, está a ver, bea, nem tinha reparado. Foi mesmo só pelos gatos.

Uma boa noite, bea!

bea disse...

Ainda bem, estou muito mais descansada (os meus propósitos são egoístas, já aviso); uma avó com gosto por quase criançolas, ainda lhe fecham o blogue por suspeitas pedófilas e eu fico sem material para ler à noite, ora esta. Se bem que a garotos dessa índole também se chamam gatos. Acho-os bonitos, jeitosos, as fotos estão um must, mas os felinos não me fazem o hobby. Acredito porém que aos seus milhares de seguidores agradem. E até a si. O mundo é muito variado e andamos cá todos (por enquanto). Além disso, o título do post resgata-os.
Já lhe desejei bom fim de semana? Pois então. Aproveite os bocadinhos de sol e de não chuva. E também os chuvosos.